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quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Viver na floresta

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O Ramayana é um dos livro religiosos hinduístas. Tem milhares de anos, é muito mais antigo que a Bíblia. Como texto religioso, ele tem servido até hoje como base para interpretações místicas e religiosas. Por conta dessas interpretações que eu - brasileira, nascida no século XX - decidi lê-lo. O início da história é muito interessante e me intrigou durante muito tempo. Peço desculpas antecipadas para aqueles que estudam o hinduísmo com profundidade, porque farei um resumo baseado nas minhas lembranças e cola de informações da internet:

Havia um rei santo chamado Dasharatha. Por rei santo se quer dizer que ele era virtuoso, justo, sábio, forte, governava bem e todos a sua volta eram felizes. Seu primogênito, Rama, para muitos é considerado uma das encarnações divinas do deus Krishna. Assim como seu pai, era forte, justo, virtuoso, etc. Sua esposa, Sita, tem uma origem tão pura e divina que nasceu da própria terra. Só que o rei Dashratha era casado com três mulheres, e sua esposa mais jovem, Kaikeyi, cobra dele uma promessa feita por amor: o rei empenhou sua palavra que atenderia qualquer pedido que ela fizesse. O que ela lhe pede é que seu filho Bháratta (o caçula) se tornasse o próximo rei. Rama, o primogênito, deveria ser exilado do reino para evitar qualquer interferência; para deixar Bháratta governar, Rama deveria viver na floresta como ermitão durante quatorze anos. O pedido soa mal pra todos - o rei fica abatido, todos os ministros ficam contra, o próprio Bháratta condena a atitude de Kaikeyi, mas ela permanece irredutível. A história chega aos ouvidos de Rama, que por iniciativa própria decide abandonar o reino para manter a promessa feita por seu pai. Ele, sua esposa e um dos seus irmãos, Lakshmana, partem para a floresta. Mesmo quando o rei morre de desgosto e Bháratta vai atrás do irmão lhe pedindo para assumir o trono, Rama não volta atrás. 

O resto do livro narra as aventuras de Rama e os seus na floresta, o rapto de Sita, a aliança dele com outros reinos para recuperar a esposa, o surgimento de outra figura muito cultuada na Índia como símbolo de fidelidade e amizade- o deus-macaco Hanuman - e a trágica separação de Rama e Sita (que mereceria um post). Apenas depois dos quatorze anos Rama retorna ao seu reino, cheio de glórias que ele conquista por conta própria durante esses anos.

O que me intrigava nessa história era a importância da palavra do rei, a tal promessa que não podia ser quebrada. Eu achava - e as interpretações que eu li iam pelo mesmo caminho - que era uma questão de honra. Honrar a palavra empenhada. Mesmo que tenha sido uma  promessa afetuosa, mesmo que a promessa tenha sido arrancada por um ardil, com finalidades torpes? Ao invés de ser um exemplo de retidão, isso me parecia um apego excessivo às palavras, privilegiar a forma e não o conteúdo. 

Passei muito tempo pensando que era isso. Um dia desses, sem motivos, me lembrei da história e percebi que a questão é muito mais profunda. Para a época que nós vivemos, nada no mundo pode ser mais importante que assumir um reino. Trabalhamos para ocupar a posição mais rica e de maior destaque. E fazemos isso com pressa, como se a menor distração ou atraso fosse ruim. Queremos ser reis para ontem. Com essa concepção de vida, o sacrifício de Rama não faz o menor sentido.

Nitidamente os personagens do Ramayana enxergam a vida de outra forma. Eles não têm a nossa pressa. Quem sabe para eles a vida fosse apenas um capítulo de uma ampla corrente de encarnações, então ela não tem importância. Ou a vida seja antes de tudo uma oportunidade de aprender, então largar tudo e ir pra uma floresta pode ser até melhor do que ficar no palácio. De qualquer maneira, isso me faz entender o quanto é difícil querer retirar do que foi escrito há muito tempo lições para os nossos dias. Longe das suas bases culturais, as atitudes podem perder todo o sentido - ou serem interpretadas de forma muito diferente da original.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Era no tempo do rei

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Eu nunca havia ouvido falar nesse livro de Ruy Castro, autor de biografias famosas como Estrela Solitária - um brasileiro chamado Garrincha e O anjo pornográfico, sobre Nelson Rodrigues. Era no tempo do rei: um romance da chegada da Corte não é um livro ambicioso. Imagino que Ruy Castro havia pesquisado esse período, por conta de algum projeto mais ambicioso e sério, e conhecer tantos personagens reais e interessantes fez com que ele tivesse vontade de dividir essas informações. Que outra maneira havia de tornar públicas vidas como as do major Vidigal e da prostituta Bárbara dos Prazeres? É um livro que eu faria meus alunos lerem, se eu fosse professora de história. É divertido, leve e informativo.

Em menos de dois anos por aqui, Blood ficara rico exportando produtos brasileiros convencionais, como café, cachaça e pimenta - e podre de rico com a vasta fauna patrícia que despachava para animar os salões da Europa: papagaios, micos, catinguelês, cágados, tamanduás, onças e lobos-guarás, além de uma formidável passarada, com espécimes dos mais diversos feitios, tamanhos, cores, formato de bico, comprimento de cauda e estilo de canto. Os campeões de venda em suas exportações, no entanto, eram os macacos, disputados em algumas cortes européias por sua aptidão para catar piolhos humanos. Mas tudo que voasse, corresse ou rastejasse caía nas arapucas dos caçadores de Blood, e os navios com suas cargas, que zarpavam quase toda semana para Liverpool, deixavam no chinelo a Arca de Noé.
Quando esses navios voltavam ao Rio, traziam âncoras, banheiras, fogões, cofres, caldeiras, bigornas e toda espécie de ferragem de segunda mão, fabricada na Inglaterra, que Blood vendia a peso de ouro para o incipiente mercado brasileiro. O resultado é que, em algumas regiões do Brasil, já havia uma praga de formigas, pela súbita escassez de tamanduás. Em compensação, em cada casa havia uma bigorna pronta para ser usada, embora nem todos soubessem para o que servia.
p.20-21

O livro conta uma aventura de Dom Pedro, com doze anos, e seu alter-ego pobre, Leonardo. A aventura em si é um mero pretexto para nos fazer conhecer um pouco o Rio de Janeiro do período. O livro fala da família real, das suas disputas, segredos de alcova, aparência física e muitos outros detalhes idiossincráticos e interessantes. Ele desmente a imagem que temos de Dom João, como um imperador inútil e burro, e nos faz entender de onde e com que interesse essa imagem foi forjada. Além disso, conhecemos um pouco dos costumes da época e personagens que o autor faz questão que saibamos que realmente existiram. O livro é baseado em tantos fatos reais, que num determinado ponto não sabemos o que é realidade e o que é ficção. No fim, isso não tem a menor importância: sem sentir, estudamos um pouco e nos divertimos com a história do Brasil.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Um insight literário sobre antidepressivos

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Ana Terra não tomava antidepressivo.

Por mais que os remédios estejam se tornando comuns - perigosamente comuns -, é difícil não existir uma culpa com relação a isso. A pessoa deveria ser mais forte. Ela deveria conseguir viver sem ajuda medicamentosa e não consegue. Temos em mente que as gerações anteriores passaram por situações difíceis e nunca tomaram nada. Como se em algum lugar parte dessa força tivesse se perdido. Não somos mais aqueles defendem suas terras a tiros, matam suas próprias galinhas, têm e perdem muitos filhos no parto; como se com a pacificação do dia a dia tivesse ido embora a fibra e a capacidade de superação.

Só que Ana Terra - por mais realista e simbólica que ela seja - é apenas um personagem de ficção, uma suposição de um autor contemporâneo. Uma história semelhante escrita naquela época revelaria outros aspectos. O interessante de ler livros escritos em séculos passados é justamente o que é revelado sem que os autores tenham consciência: os costumes do dia a dia, as rotinas, as reações, o que há de mais prosaico, a leitura que as pessoas fazem da sua realidade. Eu notei algo lendo Charles Dickens, que também está presente em Jane Austen, que seria "a grande doença". Depois de ficarem ricos e pobres, tomarem decisões difíceis e quase morrerem, comumente os personagens de Dickens caem doentes. Em Jane Austen, as mocinhas caem doentes depois de serem seduzidas por rapazes nobres e finalmente perceberem que eles não querem casar. Tanto num caso como no outro, os personagens ficam à beira da morte, fracos, delirantes. As pessoas à sua volta não sabem se eles serão capazes de sobreviver a tudo que passaram. É claramente uma maneira de digerir o que viveram, uma pausa para se acostumarem à sua nova realidade.

Antigamente as pessoas não tomavam antidepressivos, mas adoeciam e ficavam de luto. Hoje em dia tendemos a pensar no costume das mulheres de vestirem preto na viuvez como uma simples limitação. Como se toda viúva se sentisse como Scarllet O´Hara com vontade de participar do baile - a mesma Scarllet que, muitas páginas depois, adoece gravemente quando perde a filha. Os costumes relativos ao luto e às perdas não seriam tão duradouros se não fizessem sentido para os envolvidos. Mais do que vestir preto e adotar certas atitudes, antes havia um reconhecimento maior da dor e da necessidade de atender essa dor. Para atender a dor, era preciso tempo. Não se esperava que a pessoa passasse por situações penosas e na semana seguinte estivesse útil e sorridente de novo. Nem Ana Terra seria capaz disso sem tomar umas bolinhas.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Um século e cinco dias

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Uma breve história do século XX é um best seller que tenta fazer o leitor leigo, com apenas 308 páginas, entender os principais fatos e mudanças ocorridas no último século. Projeto ambicioso, que podia ser muito bom ou um desastre. Geoffrey Blainey, o autor, faz o possível para torná-lo interessante. O livro não se concentra apenas nos acontecimentos políticos e grandes estadistas, tal como as histórias de antigamente. Ele nos informa mudanças de comportamento, tecnologias usadas na época, expectativas da vida. Em meio a grandes acontecimentos, há exemplos triviais significativos. Só que isso não é o suficiente. O problema do livro é justamente o tamanho do empreendimento, ter coisas demais para relatar. Em muitos momentos ele parece um livro didático, com informações generalistas e imprecisas. Um bom exemplo é quando ele diz que a escravidão foi abolida no Brasil já no início do século - 1888 é início do século XX?  Por outro lado, a necessidade de citar vários países acaba tornando tudo um amontoado de informações. É daquelas leituras que ao final do capítulo quase tudo já foi esquecido. O resultado final é que o livro possui momentos interessantes, mas que não conseguem segurar o leitor.

***

O que um livro tem de chato e não chegar a lugar nenhum, o outro tem de interessante. Cinco dias em Londres é um clássico na área de história e jornalismo. Ele consegue trazer informações novas mesmo para aqueles que já conhecem e se interessam pela Segunda Guerra Mundial. De acordo com Lukacs, seu autor, num período de cinco dias, em Londres, o rumo da Segunda Guerra Mundial e, por consequencia, da história mundial, foi alterado. Nesses cinco dias, Churchill emergiu como líder e colocou a Inglaterra contra o Terceiro Reich. Para entender que mudança isso significou, o livro nos coloca dentro do espírito que dominava a Inglaterra nesse período. Para tanto, somos informados sobre os avanços de Hitler, e que informações se dispunha sobre ele, as negociações e os bastidores do parlamento inglês, qual a opinião pública sobre o conflito - tudo amplamente discutido através de documentos, cartas, livros e depoimentos. O principal personagem do livro, Winston Churchill, estava longe de ser a unanimidade. Considerado exagerado e inconfiável, com uma posição insistente contra Hitler, ele surge aos poucos como única alternativa ao conflito. O livro consegue mostrar a ação titubeante do presente - não a história dos que olham para trás e possuem as respostas e sim a ação daqueles que ainda não sabem o que fazer. Como lição, ele recupera a importância de pequenas decisões, batalhas que nem sempre envolvem tiros.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Holocausto brasileiro: 50 anos sem punição

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Milhares sucumbiram de frio, fome, tortura e doenças curáveis; 50 anos depois, ninguém foi punido por este genocídio 
Por DANIELA ARBEX 


Não se morre de loucura. Pelo menos em Barbacena. Na cidade do Holocausto brasileiro, mais de 60 mil pessoas perderam a vida no Hospital Colônia, sendo 1.853 corpos vendidos para 17 faculdades de medicina até o início dos anos 1980, um comércio que incluía ainda a negociação de peças anatômicas, como fígado e coração, além de esqueletos. As milhares de vítimas travestidas de pacientes psiquiátricos, já que mais de 70% dos internados não sofria de doença mental, sucumbiram de fome, frio, diarréia, pneumonia, maus-tratos, abandono, tortura. Para revelar uma das tragédias brasileiras mais silenciosas, a Tribuna refez os passos de uma história de extermínio. Tendo como ponto de partida as imagens do então fotógrafo da revista "O Cruzeiro", Luiz Alfredo, publicadas em 1961 e resgatadas no livro "Colônia", o jornal empreendeu uma busca pela localização de testemunhas e sobreviventes dos porões da loucura 50 anos depois. A investigação, realizada durante 30 dias, identificou a rotina de um campo de concentração, embora nenhum governo tenha sido responsabilizado até hoje por esse genocídio. A reportagem descortinou, ainda, os bastidores da reforma psiquiátrica brasileira, cuja lei sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, editada em 2001, completa dez anos. As mudanças iniciadas em Minas alcançaram, mais tarde, outros estados, embora muitas transformações ainda estejam por fazer, conforme já apontava inspeção nacional realizada, em 2004, nos hospitais psiquiátricos do país. A série de matérias pretende mostrar a dívida histórica que a sociedade tem com os "loucos" de Barbacena, cujas ossadas encontram-se expostas em cemitério desativado da cidade. 

Leia a reportagem completa da Tribuna de Minas.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

O antigo método de ficar famoso com polêmicas

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Com o aumento da influência das redes sociais, aumentou a disputa pela fama em redes sociais. Além do próprio reconhecimento no mundo virtual, essa fama pode render frutos no mundo real. Com o aumento de usuários e interessados, isso se torna cada vez mais difícil. Uma das maneiras de ficar famoso no twitter é arranjar briga com pessoas que já são famosas, como mais recente exemplo da blogueira Avena. O método de se tornar famoso por causa de brigas não é novo. Este episódio muito interessante do início da vida de Chatô demonstra isso:

A moda na imprensa brasileira na virada do século não era a notícia, mas a polêmica. Jornalista que decidisse fazer carreira como grande editor ou como repórter de talento estava condenado a desaparecer sob a poeira da obscuridade. Quem tivesse planos de brilhar, que preparasse a pena e arranjasse alguém para combater. A polêmica era o palco ideal para o exercício da elegância, da erudição e, quase sempre, da ferocidade no ataque. Verdadeiro teste de resistência, sua importância podia ser medida pelo tempo que durasse, com os dois contendores de pé. Uma polêmica que só resistisse um mês não era digna do nome. Mais do que o conteúdo, foi o tempo de duração que imortalizou, por exemplo, a guerra de palavras entre o jurista Ernesto Carneiro Ribeiro e Rui Barbosa em torno do projeto de Código Civil do presidente Campos Sales, no segundo ano do século. A rigor, o assunto não deveria ultrapassar as paredes dos tribunais e da Câmara dos Deputados, mas foi nas páginas dos jornais que os dois duelaram. A arenga durou até 1905. Foi assim que o Brasil alfabetizado se emocionou, como nas lutas de boxe, com disputas memoráveis como "Carlos de Laet contra Camilo Castelo Branco", "Júlio Ribeiro contra o padre Sena Freitas " ou "Hemetério José dos Santos contra Machado de Assis". Iniciada a peleja, os litigantes estavam qualificados a se apresentar em público não apenas como jornalistas ou advogados, mas como "polemistas". E quanto mais notável fosse a vítima da polêmica, tanto maior seria o prestígio do polemista.
p.28

Hoje, pela velocidade da informação, basta que um polêmica dure poucas horas- tempo suficiente para conseguir milhares de seguidores. Avena estaria fazendo a mesma coisa que o adolescente e até então desconhecido Chatô:

No auge da chamada Campanha Civilista, em 1910, quando Rui Barbosa disputava a Presidência da República com o marechal Hermes da Fonseca, Chateaubriand já havia deixado o Pernambuco e trabalhava no Jornal do Recife, diário de propriedade de Luís de Faria. Embora não houvesse diferenças essenciais nas propostas dos dois candidatos a presidente, Rui Barbosa ainda desfrutava as glórias de seu desempenho na conferência internacional da Holanda, de onde voltara como o "Águia de Haia". O pequenino baiano anunciava que o Brasil vivia uma guerra entre a pena (ele) e a espada (o marechal). Em defesa do voto secreto, percorreu o Brasil realizando conferências públicas e inaugurando prática inédita por aqui - uma campanha eleitoral. A disputa dividiu o país. No Rio de Janeiro, partidários do hermismo usavam as colunas do Jornal do Comercio e de A Imprensa para combater Manuel de Oliveira Lima, escritor e diplomata pernambucano ligado a Rui Barbosa. Membro da Missão de Propaganda e de Expansão Econômica do Brasil na Europa, Oliveira Lima era acusado de usar o posto oficial, em conferências internacionais, para empurrar o Brasil para posições antiamericanas.

Tratava-se de uma típica polêmica federal, que jamais passaria pela província. Mas, quando os ecos dela aportaram em Recife, Chateaubriand decidiu apresentar-se como voluntário naquela guerra, sem ter sido convocado por ninguém. Ele sabia que na verdade o que importava não era a vítima dos ataques, mas a eleição presidencial e os dois candidatos. Além de concordar com as posições de Oliveira Lima, havia outro dado a justificar sua intromissão naquela peleja de gigantes: o ofendido era um pernambucano, que precisava ser defendido por um nordestino. Mesmo conhecendo-o superficialmente, Chateaubriand alimentava a distância grande admiração pelo gordíssimo e ferino diplomata, um maníaco pela atividade epistolar que chegava a escrever 1600 cartas por ano aos amigos.
p.28

Deixo os detalhes para quem quiser consultar o livro. Em resumo: Chatô escreveu artigos combatendo o hermísmo e com a polêmica conseguiu se tornar uma estrela em Pernambuco. Não satisfeito, decidiu arranjar uma polêmica no sul, e se meteu na briga dos escritores José Veríssimo e Sílvio Romero, a favor do primeiro. Era o que ele precisava para se tornar nacionalmente conhecido. Só que Silvio Romero demonstrou ter uma sabedoria que os "grandes" das redes sociais ainda não parecem ter alcançado:

Os ecos do sucesso que o livro fazia no Sul não o entusiasmavam. O que ele desejava ardentemente era bater-se com Sílvio Romero. Como aquecimento para a luta maior, desancou o jornalista e poeta Osório Duque Estrada, autor da enigmática letra do Hino Nacional brasileiro, que saíra em defesa de Romero nas páginas do Correio da Manhã. As semanas se passavam e nenhuma notícia da resposta de Sílvio Romero chegava a Recife. Nem chegaria jamais. Antes de reagir, o crítico teve a cautela de informar-se com amigos de Recife sobre a identidade do misterioso A. Bandeira de Melo. Ao saber que o autor da petulância era um pirralho, um terceiranista de direito de Recife, dedicou-lhe apenas um humilhante post-scriptum nas suas "Provocações e debates " publicadas no Jornal do Commercio: "Condeno-o ao perpétuo desprezo, que é o que merece a audácia de um aspirante da literatura. Jamais me ocuparei da sua pessoa ou de seus fracassados pendores críticos e literários". Para Chateaubriand aquilo era o fim. O sonho de tornar-se um polemista nacional morrera provisoriamente nas cem páginas do seu livrinho
p.31

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Olga

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Eu não tive curiosidade para ver o filme Olga porque todos foram unânimes em dizer que ele reduzia o livro a uma história de amor, que retirava dele todo conteúdo político. Vista como história de amor, a união entre Prestes e Olga teria os elementos de um amor trágico, no sentido mais grego: o protagonista como um simples joguete nas mãos de um destino cruel. O amor entre Prestes e Olga é apenas uma parte da vida de ambos, é a união de dois idealistas que lutam juntos em nome de algo maior. O livro nunca pretendeu ser a história desse amor; nele não está descrito o primeiro beijo, se eles resistiram um ao outro ou se viram a sua união como algo previsível e conveniente.  Fernando Morais, através da figura de Olga, conta um pouco da história da fracassada tentativa de uma revolução comunista, do getulismo e da tortura.

Sempre ouvi falar de intervenções do FBI e agências de outros países do Golpe de 64, mas tudo sempre me soou muito vago e meio sem sentido. A minha geração não viveu a Ditadura, e lembra - quando muito - da morte de Tancredo Neves como um dia que não teve aula. Intervenção de outros países, luta entre direita e esquerda e espionagem nos soam muito distantes, quase como uma paranóia. O livro Olga traz esse período de volta. Ele mostra uma esquerda organizada de uma maneira que eu jamais tinha lido. Ser comunista era um modo de vida, quase como um emprego. Olga começa sua carreira aos quinze anos, e sobe rapidamente no partido por ser estudiosa e destemida. Vemos Olga fazendo propaganda, administrando cursos, estudando material revolucionário, insistindo no treinamento para a luta armada, usando vários documentos falsos. A luta sempre foi para ela uma escolha. Ela esteve perto da morte e prisão muitas vezes antes de finalmente ser presa grávida-de-Luís-Carlos-Prestes-e-querer-ter-seu-filho-no-Brasil. Correr riscos fazia parte do pacote.

Berlim, fevereiro de 1938
Carlos:
Posso dizer-lhe que, junto com o 5 de março de 1936, o 21 de janeiro de 1938 foi o dia mais negro da minha vida. Frente a tais acontecimentos, fica-se diante da alternativa de sucumbir ou tornar-se mais dura. E você sabe que, para mim, só existe a segunda alternativa. Para isto, felizmente, ajuda-me bastante o fato de que sou capaz de distinguir entre a insignificância das questões pessoais e os acontecimentos históricos mundiais do nosso tempo. Mas no meio de tudo isso há algo bom: todo o meu amor e o meu carinho não poderiam substituir, para a pequena, o que ela precisa da vida. Lígia escreveu-me contando que Anita brinca com a bolsa dela, com a caixa de pó-de-arroz, o telefone e a maçaneta da porta, que anda pela casa, que tomou café-da-manhã no vagão restaurante de um trem. Tudo isso soa para mim como um conto de fadas de antigamente...
Pedi a Lígia que fotografasse um sorriso de Anita para você - o que se diz é que o sorriso dela encanta as pessoas. E é esse doce sorriso da nossa pequena que encerra um sopro de felicidade para seus pais. 
A tua,
Olga
(pág 253)

É impressionante ler que o casal Arthur e Elise Ewert - que veio para o Brasil ajudar na revolução que teria Prestes como líder - foi torturado durante uma semana inteira, com alternância de carrascos, sem poder dormir durante um minuto sequer, e que não deram uma única informação para a polícia. Depois do fracassado golpe, um a um os nomes vão surgindo, e as pessoas vão sendo interrogadas, torturadas, resistem ou entregam os companheiros, morrem. É como assistir o avanço de uma nuvem negra, sabendo que a tempestade chegará mais cedo ou mais tarde. Prestes e Olga são os últimos a cair e, quando finalmente acontece, são amparados pelo que ela chama de "distinguir insignificância de questões pessoais e os acontecimentos históricos mundiais". Os dois lados estavam dispostos a matar e morrer. Existe uma aceitação; eram pessoas que acreditavam estar construindo um mundo melhor, e suas vidas eram apenas uma ferramenta. Essa perspectiva de vida que não existe mais. Hoje não somos capazes de crer nem no sucesso de uma revolução, quanto mais colocar em risco nossa família e conforto em nome de uma. O livro mostra que o não foi apenas o comunismo que perdeu para o getulismo, ou Olga que perdeu a vida - todos nós perdemos o sentido de sacrifício à uma ideologia.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Construindo um Império

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Documentário imperdível do History Channel. Ele relaciona as conquistas do Império Romano ao seu avanço tecnológico, principalmente na engenharia, e suas implicações culturais. Longo e vale cada minuto.



(roubei do Fabián Ferraz)

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Porquê história, por Hobsbawm

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A destruição do passado - ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa existência pessoal às gerações passadas - é dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem. Por isso os historiadores, cujo ofício é lembrar o que outros esquecem, tornam-se mais importantes do que nunca no fim do milênio. Por esse motivo, porém, eles têm que ser mais do que simples cronistas, memorialistas e compliadores.
A era dos extremos, p. 13

Quando li esse trecho, lembrei imediatamente da discussão sobre porquê saber datas históricas. Se a própria história mudou, se perdeu muito de suas pretensões, por que ainda é importante conhecê-la? Já a idéia do presente contínuo da nossa época, é entendida de maneira menos antipática (e não como a eterna crítica que "os jovens de hoje perderam os valores" que toda geração faz as que lhe são posteriores) se levarmos em conta as discussões de Bauman - a falta de enraizamento e a eterna necessidade de se reconstruir, possibilitadas pela vida on line, dão ao sujeito a sensação de liberdade total sobre quem ele é. E, por consequencia, a ilusão de autonomia sobre o passado.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Fast psicologia

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Cena 1 : Coisas que odeio em mim.
Esse programa se propõe a resolver dez problemas em apenas um dia. A californiana Jane se queixa de que ela não consegue esquecer o namorado com quem viveu mais de cinco anos e de quem estava separada há dois. Eles chamam sua melhor amiga para lhe dar apoio e um psicólogo. Diante das câmeras, ela fala da saudades que sente dele e chora. O psicólogo pede para ela escrever no papel todos os seus medos e mágoas com relação a esse assunto. Depois, discursa sobre ela estar começando um novo período na sua vida, simbolizado pela queima do papel onde ela havia descrito seus problemas.

Cena 2: Super Nanny.
A especialista Super Nanny ajuda pais que não conseguem educar seus filhos. As cenas mostram Mary oprimida por seus dois filhos. Ela carrega suas mochilas, apanha deles quando os contraria e se sente extremamente culpada quando coloca qualquer limite. Super Nanny lhe dá uma mochila cheia e as duas saem para caminhar. Chegam ao topo de uma montanha. Quando Mary abre sua mochila, ela está cheia de pedras. Aquelas pedras, Super Nanny lhe diz, representam toda culpa que ela tem carregado inutilmente. Ela é convidada a nomear cada pedra com uma de suas culpas e joga-las fora.

Cena 3: Guro do estilo.
A participante abre seu guarda-roupa a um especialista, que analisam seu tipo físico e estilo para lhe propor um novo visual. Depois de conhecer Sue, o especialista conclui que ela têm um grave problema de auto-estima. Então marcam para ela uma consulta com um psicólogo que atende várias estrelas. Na consulta, ele faz com que ela desfile com uma roupa feita de saco de lixo - "o que pode ser pior do que se vestir de saco de lixo?". Depois a mostra a vários espelhos de imagem deformada, que simbolizam a maneira como os outros a vêem. Por fim, diante do espelho normal, ela conclui que o melhor é ser ela mesma.

A psicologia, como ciência, nasceu sob influência do pensamento filosófico europeu. Para muitos o marco está em Descartes, que ao dividir a res cogitans da res extensa, ou seja, a parte psíquica da física, iniciou uma forma de ver o indivíduo e estudá-lo. A psicologia estaria separada da biologia e outras ciências materiais por se debruçar sobre aquilo que se manifesta no físico e possui suas próprias origens e leis - para tanto, merece um método específico de estudo. Wundt em 1873 ele publicou o livro Fundamentos da Psicologia Física e é considerado o pai da psicologia. Ele criou em 1879 o primeiro laboratório de psicologia. Como é possível perceber, a psicologia experimental ainda dialogava muito com experimentos fisiológicos. Idéias hoje associadas à psicologia como inconsciente, repressão e libido surgiram graças a Freud. Em 1895, no Estudos Sobre a Histeria, Freud procura minimizar o discurso físico em torno da histeria para privilegiar a dimensão psicológica.

O tratamento psicológico, quando pensado em função do inconsciente e traumas infantis, é bastante dispendioso. A preocupação com o tempo e a cura não foi uma prioridade no nascimento da disciplina. A psiquiatria nunca teve um histórico de curas, apenas de controle. A psicanálise também não se propõe a curar. Na tipologia da psicanálise, o sujeito normal é um neurótico. O neurótico é aquele que entende a adere às regras sociais, mesmo que isso lhe cause sofrimento. A repressão da libido é entendida como condição básica da civilização. A única coisa que a psicanálise pode propor aos seus pacientes é o ajustamente social e alívio de alguns sintomas. Com Jung, o paciente terapeutizado se propõe a fazer um mergulho tão profundo no seu inconsciente que atinge o inconsciente da própria humanidade. Reich, outro discipulo eminente de Freud, propunha uma verdadeira revolução sexual: a neurose invidividual, fruto de uma repressão sexual, não poderia encontrar sua plena manifestação numa sociedade puritana e repressora. Por isso, a libertação da indivíduo necessariamente passaria pela libertação da própria sociedade.

Nos Estados Unidos surgiu uma outra maneira de entender a psicologia, muito mais prática e direta. Lá surgiu a psicologia comportamental, também chamada de behaviorismo. O behaviorismo metodológico de Watson (1878-1958) se propunha a abandonar os processos cognitivos e se limitar ao comportamento observável. Skinner (1904-1990) levou o método comportamental a outro patamar, ao propor que através do comportamento observável é possível conhecer e modificar a dimensão psíquica. Para tanto era preciso fazer uma análise comportamental, ter objetivos claros, levar em conta possível condicionamentos e propor modificações ambientais. Isso tornou possível a criação de terapias mais rápidas. Embora criticado pelo seu mecanicismo e por ignorar a questão da liberdade pessoal, o behaviorismo se mostrou muito eficaz em tratamentos como os de fobias, distúrbios de sexualidade, necessidades educativas especiais, entre outros.

O que ninguém poderia prever é até onde a idéia da rapidez e simplificação poderia nos levar. O behaviorismo se livrou do inconsciente e essa nova modalidade de terapia se livrou do condicionamento. Restou apenas o comportamento. Em programas de TV, palestras motivacionais e qualquer evento que dure algumas horas, é possível alguém usar algum objeto como metáfora - papel para simbolizar as dificuldades, pedras transformadas em culpa, espelho e roupa em auto-imagem - e propor com isso uma mudança de vida. Pela popularidade do método, não duvido que isso possa causar uma sensação imediata de alívio. Acho que se as questões de uma pessoa fossem simples como carregar pedras, ela mesma já teria dado conta de resolver o problema. Essa simplificação extremada não possui nenhuma base consistente; ela pode ser resultado da solicitação crescente que a psicologia sofre da sociedade. E certamente contribuirá para a desvalorização da psicologia.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Uma história íntima da humanidade

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O livro me foi indicado por uma historiadora, a Nikelen. Além do mais, o título do livro usa a palavra história. Então nada mais natural do que procurá-lo como um livro de história. Mas na biblioteca ele estava classificado como Antropologia Social (e existe uma antropologia que não seja social?). Pior ainda foi quando procurei um link para cita-lo neste post e ele aparece como psicologia. A confusão, na verdade, é compreensível. O primeiro capítulo, sobre liberdade, foi quase como ler auto-ajuda para mim. Auto-ajuda num sentido bom, claro.

Capítulo 1: Como os seres humanos continuam a perder as esperanças, e como novos encontros, e óculos novos, as renovam.


O Uma história íntima da humanidade se confunde com antropologia, com psicologia e com uma certa auto-ajuda porque ele aborda temas próximos e de uma maneira muito pessoal. A cada capítulo, ele conta a história de alguém. São histórias verdadeiras, de mulheres (na introdução o autor justifica essa escolha) que refletem sobre as escolhas que fazem e que rumo deram às suas vidas. Dentro de cada uma dessas histórias o autor destaca uma questão e mostra o quanto ela diz respeito a todos nós. Ele mostra que as questões daquelas mulheres não são inéditas, que as maneiras de entender certos fenômenos mudou de enfoque e de importância ao longo do tempo. Ou seja, o autor fala do próximo e do distante, do particular e do comum.

O medo tem sido quase sempre mais poderoso do que o desejo de liberdade. Contudo, o imperdor Maurício, de Bizâncio (582-602), descobriu uma excessão. Ficou perplexo com três eslavos que havia capturado e que não portavam armas. Levavem somente guitarras e cítaras e vagabundeavam cantando as alegrias da liberdade, de estar em campos abertos gozando as brisas frescas. eles lhe disseram: "É normal que pessoas estranhas à guerra se devotem à música com fervor". Suas canções versavam sobre o livre-arbítrio, e eles eram conhecidos como pessoas de vontade libre. Em 1700 ainda havia gente assim quando Pedro o Grande decretou-lhe a condenação: todos deviam fazer parte de um Estado legal, com deveres preestabelecidos. Mas 150 anos depois, Tara Sevlenko, um servo ucraniano alforriado, cantava poemas na mesma linha, lamentando que " a liberdade esteja adormecida por ordem do czar bêbado", e insistindo em que a esperança podia ser encontrada na natureza:

Ouça o que diz o mar
Interrogue as montanhas negras.

Havia escravidão, antes de tudo, porque os que queriam ficar sozinhos não se afastavam do convívio dos que apreciavam a violência. Os violentos têm sido vitoriosos ao longo da história porque administravam o medo com que cada um de nós nasce.


O objetivo do livro, ao fazer recortes tão originais, é ambicioso: mostrar que as coisas não são como devem ser, e sim formadas por muitas escolhas. Escolhas forjadas pelos nossos antepassados, que nos deram uma maneira de olhar a questão. Mas também escolhas da nossa própria geração, que lança ela mesma uma contribuição à maneira de olhar os fenômenos. O autor procura retirar do leitor o sentimento de determinação; conhecer a nossa história, ao invés de nos mostrar um curso de progresso inevitável, aumenta a capacidade crítica. "Quero demonstrar como, hoje em dia, é possível aos indivíduos formarem opinião nova de sua própria crônica pessoal e de todo o registro da crueldade humana, seus equívocos e alegrias. Para se ter visão nova do futuro, sempre foi necessário, antes, adquirir uma visão nova do passado" (p.7)

quarta-feira, 13 de julho de 2011

História sem régua

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Minha sogra era professora primária e era dia 26 de abril quando estavamos almoçando lá. Ela perguntou à neta, de 14 anos, que data importante era aquela. 26 de abril? Eu sabia que o descobrimento do Brasil era 22 de abril, e pra existir um 26 de abril, concluí que aquela era a data da celebração da primeira missa. A sobrinha do Luiz não fez todos esses cálculos, e começou a chutar datas aleatórias - "Dia da independência do Brasil? Dia da descolonização do Brasil?" Descolonização? Minha sogra ficava doida. Contou que era o dia da primeira missa e perguntou quem a havia rezado. Outra negativa. Todos os presentes - eu, o Luiz, minha cunhada e meu sogro - sabiam as respostas. Depois o Luiz me explicou que a mãe dele sempre fica louca da vida em perceber que a neta é muito ruim em datas.

Eu não soube o que pensar. Não sei o quão importante é lembrar das datas, se faz mesmo diferença saber que foi em 1888 que foi assinada a Lei Áurea e outros tantos números que tenho guardados na minha cabeça. Acho que todos já recebemos um e-mail dizendo que há anos atrás as questões eram mais rigorosas, que o aluno de hoje mal precisa pensar para responder uma prova. Desse ponto de vista, o fato de não lembrar das datas seria o indício de algo maior, de que os alunos de hoje aprendem menos do que o básico. A impressão que eu tenho é de que certas discussões acadêmicas acabam chegando de maneira estranha - talvez o termo certo seja empobrecida - às salas de aula. Hoje a História, na academia, tem procurado abandonar o modelo cronológico que a dominou durante séculos, o que mesmo que me foi ensinado: o da história progressiva, um grande modelo explicativo da humanidade. Aquela história que estudava as Eras, que se preocupava em dizer se foi a Revolução Francesa ou a Primeira Guerra Mundial que nos fez deixar de ser Modernos para nos tornarmos Contemporâneos. Para esse modelo, era essencial conhecer as datas.

Filhos dessa auto-crítica histórica estão abordagens muito interessantes, que trazem uma maneira nova de olhar o que já parecia explicado, ou que lançam questões inovadoras sobre o passado. Ao invés da história dos grandes estadistas, hoje brotam livros que falam das pessoas comuns, de como viviam e pensavam aqueles cujos nomes ninguém nunca se interessou em saber. Nem todo recorte precisa ser feito por países, reinados ou guerras; podemos nos perguntar da concepção de morte, amor, higiene, infância e tudo o que faz/fez parte das nossas vidas. É uma história que nos torna mais próximos dos que nem conhecemos, que nos mostra que mentalidades ainda resistem, o que mudou, o que é radicalmente diferente da maneira como gostamos de nos entender. Meu amor pela história se renova quando leio livros assim. Quando falamos em mudanças de mentalidade, a data se torna uma questão menor. Podemos acompanhar o movimento e dizer quando ele parece ter se estabelecido, mas não é possível afirmar quando, onde e nem porquê.

Não me arrisco a dizer se essa nova geração não sabe a data da Proclamação da República (15 de novembro) mas sabe o que ela significa, ou se nem é importante saber o que é Proclamação. Sei que aos olhos mais cronológicos, é como se a história estivesse se desfazendo.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Alimentação perfeita

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Cresci em meio a livros de alimentação natural e homeopatia, e minha mãe sempre se esforçou para seguir o que esses livros pregavam. Mas era muito difícil. Se por um lado as marmitas de comida macrobiótica que ela trazia determinaram o meu paladar para sempre, por outro éramos crianças e todas as crianças estão atentas às novidades das bolachas, dos chocolates, dos salgadinhos. Ela tentava achar um meio termo, se recusando a comprar Tang e dando preferência ao chocolate no lugar da bala. A intenção era ser naturalista, mas pra isso ela precisava de um tempo, dinheiro e pesquisa impossíveis para uma mulher que passava o dia inteiro fora.

Se por um lado minha mãe não conseguiu a alimentação perfeita, eu tive a oportunidade de conhecer quem conseguiu essa proeza. Era uma família formada por um casal de uma filha. Não conheci o pai, que passava quase todo o tempo na chacarazinha que eles tinham. Eu desconfiei de qualquer coisa quando a filha, que era uma pessoa muito sociável, se recusou a ir a um comes & bebes de confraternização. O convívio com a família e muitos sucos de bambu depois, me fizeram descobrir que ela e a mãe conseguiam realmente se alimentar de modo "perfeito", do modo que todos os livros de comida natural pregam. Elas eram totalmente vegetarianas e cortaram o açúcar de suas vidas. As coisas que elas comiam vinham de diferentes origens: da chácara, da hortinha no apartamento, de feiras de orgânicos e, por último, da sessão de hortifruti do supermercado perto de casa. E era apenas isso e produtos de limpeza que elas compravam lá. Tudo o que elas comiam era feito em casa e integral; graças ao talento culinário da mãe, tudo era muito gostoso.

Ao mesmo tempo, foram elas que me fizeram perceber porque minha mãe nunca conseguiu ter a alimentação natural perfeita, do mesmo modo que eu não consigo. Se nós lemos Sugar Blues e acreditamos no poder dos alimentos, o que nos falta? A família de alimentação perfeita a tinha tão perfeita que elas nunca comiam fora de casa. Seus critérios alimentares eram rigorosíssimos. A filha se viu em sérios problemas quando começou a namorar e foi conhecer a família dele. Para agradá-la, sabendo que ela não bebe refrigerante ou sucos de caixa, decidiram lhe oferecer um chá. Compraram matte leão. Mas pra quem é realmente naturalista algo que vem adoçado, cafeinado e numa garrafa pet não pode nem ser chamado de chá. Ela não aguentou beber e foi pega no flagra quando despejava o conteúdo do copo na pia da cozinha...

Por outro lado, conheço quem se despreocupe completamente com essas questões. Eu mesma fiz isso, quando casei. Adotamos aqui em casa o mesmo esquema que o Luiz estava acostumado na casa dos pais dele: geladeira sempre cheia de refrigerante, comida congelada, bolachas recheadas, muitas idas à praças de alimentação. Mais tarde, tivemos que lutar para emagrecer e eu me revelei uma grande viciada em coca-cola. A mesma coca-cola que um amigo do Luiz (cada dia mais gordo e com problemas de colesterol) toma de café-da-manhã, porque "espremer uma laranja pra fazer suco dá muito trabalho e perde muito tempo". Na falta de tempo e de habilidade para fazer uma boa comida natural, pagamos caro pra comer regularmente num restaurante vegetariano. Dá pra dizer que temos uma alimentação mais saudável do que a média. Vejo os resultados disso quando minha cunhada, que é mais nova do que o Luiz, teve que retirar pedras da vesícula e parece muito mais velha.

Por isso que eu gostei muito quando a Sonia Hirsch, na sua entrevista, falou da alimentação possível, a alimentação que conjuga o que faz bem com o que todo mundo come. Porque a comida é muito mais do que um simples combustível que nos anima. Ela está nas confraternizações entre amigos, no lanche da tarde com as visitas, nos almoços para conhecer os pais, no cafezinho com os colegas de trabalho, nos jantares de negócios. O que comemos fala da época que nós vivemos, e com quem comemos fala sobre as nossas relações . Não acho que devemos nos submeter apenas à nossa época de maneira acrítica, em matéria de comida ou em qualquer outra. Ao mesmo tempo, não conseguimos estar de todo fora dela.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Uma opinião e uma história sobre arte

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Os cânones artísticos estão continuamente mudando, mas na nossa época quase todas as formas de arte entraram na regra de não ter regra. É possível misturar várias referências, sem a necessidade de ser fiel a um estilo, local ou época. Não existe mais a preocupação de representar a realidade objetiva, que está cada vez mais fácil de ser capturada por celulares, filmes, videos caseiros. O artista tem liberdade total, de usar todas as formas, meios e materiais para dizer o que quer dizer. Isso, que à primeira vista parece tornar as coisas mais fáceis, levou a arte a outros desafios. Sem ter em nada pra se apoiar, cabe ao artista a decisão de cada etapa - terá nome, terá cor, terá rosto? O resultado imediato dessa aparente democracia é muita coisa que só precisa de cara de pau para se declarar arte. Coisas que não têm significado e que reivindicam um significado posterior; ou coisas que possuem apenas significado, cuja apresentação não diz absolutamente nada ao outro. Por isso muitos simplesmente desistiram de desfrutar da arte, de ir a exposições, e dizem que não entendem e não gostam. Ter feito parte dessa tentativa - a que muitos chamados de ser artista - me fez compreender que muita coisa é simplesmente ruim mesmo. Que chamar o público de burro não deixa de ser uma forma de se proteger. Pouca coisa do que está sendo produzida hoje conseguirá romper a barreira da bobagem e dirá alguma coisa ao futuro.

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O atelier funcionava de terça a sexta, em horário comercial. Por causa disso, a frequencia das pessoas era limitada àqueles que podiam pagar sem trabalhar o dia inteiro. Havia aposentados, donas de casa, pessoas que vínculos artísticos ou simplesmente recém-surtados sem saber o que fazer da vida (meu caso). Dentre essas pessoas com vários perfis, a que tinha mais dinheiro era uma senhora a quem chamarei de B.Michelin. O marido dela era muito rico, vivia viajando e a filha dele já era adulta. Sem maiores obrigações na vida, B. Michelin decidiu colocar a sua sensibilidade artística em objetos coloridos, femininos e de cores vibrantes, tais como ela mesma.

Ela não era muito boa na escultura propriamente dita, na realidade. Esculpir é um trabalho pesado. Ela não tinha noção de desenho ou de anatomia, e pra piorar tinha graves problemas de coluna. Havia, no atelier, um funcionário treinado pelo nosso professor durante anos. Esse funcionário conhecia todos os segredos da escultura e, por causa disso, fazia toda parte pesada das encomendas que nosso professor recebia. Foi o professor mesmo que nos disse, falando sobre a história da escultura, que os grandes escultores do passado não faziam tudo sozinhos. Que seria humanamente impossível produzir aqueles mármores maravilhosos da Antiguidade Clássica se não tivessem muitos escravos à disposição. Baseada nessas informações, B. Michelin se despreocupou com a parte pesada do trabalho. Ela idealizava peças e pagava o funcionário para fazer.

Um dia ela nos contou que havia contratado uma Crítica para avaliar o trabalho dela. Ela ia pagar quase mil reais (e isso foi há uns dez anos). Achamos que ela estava fazendo papel de trouxa. A Crítica foi no apartamento (no Batel, um apartamento por andar, 400m² de área privativa) de B.Michelin, e "gritava a cada peça", achando tudo lindo e maravilhoso. Ela classificou o trabalho como Art Noveau Pop, informação essa que foi adotada para todo sempre. Dias depois, apareceu uma coluna de página inteira no Caderno de Cultura da Gazeta do Povo, descrevendo B. Michelin com a mais nova revelação artística da cidade. Quando B. Michelin participou de duas exposições de designers como destaque, uma com o prazo de inscrição já vencido, começamos a desconfiar que os trouxas éramos nós.

Na versão original desse texto, a história terminava contando que com a troca de governo essa Crítica acabou caindo, e o investimento de B. Michelin não alcançou todas as suas possibilidades. Mas aí pesquisei o site da artista, depois de tantos anos, e vi que ela tem participado de exposições em São Paulo, Londres e Nova York. Caro leitor, a trouxa sempre fui eu.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Joana D´arc de Luc Besson

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Comecei a gostar de filmes de época quando vi Ligações Perigosas. O filme me impressionou tanto que revi incontáveis vezes de li o livro umas duas ou três vezes. Minha impressão foi tão boa que esperava encontrar em outros filmes de pessoas com perucas brancas e vestidões o mesmo estranhamento dos diferentes costumes, em meio a uma boa trama. Não preciso dizer que quase tudo que vi depois foi uma decepção. E a cada ano que passa, a decepção tem sido maior: detesto ver os valores e costumes próprios da nossa época transpostos para outra. Muda o cenário, muda o figurino, mas os personagens agem e pensam como se estivessem na era da internet. Tem gente que não liga, acha que é liberdade poética, etc. Eu não gosto, considero apenas um filme ruim.

Nunca esqueci da dor no bolso que senti por ter visto Joana D´arc de Luc Besson no cinema. É um filme que não merece nem Sessão da Tarde. Em uma só cena, logo no início do filme, já pude perceber que seriam longos (e cheios de indignação) os minutos sentada naquela poltrona. O filme começa com a pequena Joana vendo a família ser dizimada e vai viver com parentes. Na cena em questão, o casal a coloca sozinha no quarto e conversa discretamente sobre o evento - só faltou usarem a palavra "traumático" - que ela viveu. Medievais que conviviam com a fome, a morte e a violência de maneira muito mais próxima, com baixa perspectiva de vida, que destrinchavam animais à mesa, achando brutal uma menina ver a morte de perto? (Ok, não era qualquer coisa, mas não tinha a dimensão que teria hoje, numa época em que a maioria das pessoas nunca vestiu um cadáver). Medievais achando que uma criança deve ser preservada, como se naquela época Freud já tivesse dito que nossa personalidade é formada na primeira infância, que tudo o que acontece naquela época pude gerar consequencias no futuro a que chamamos de traumas? Medievais oferecendo o privilégio de um quarto a... alias, como é que eles tinham quarto pra oferecer?

Ainda sobre Joana D´arc, é difícil encontrar alguém hoje em dia que não veja nessa história de ouvir vozes um sintoma puro e simples de esquizofrenia. E dá pra perceber que Luc Besson pensa exatamente assim. Em todos os momentos do filme, vemos Joana (vivida pela péssima Milla Jovovich) com os olhos esbugalhados, enquanto os outros a olham com suspeita, com cara de "nossa, que mulher louca". O Dustin Hofman aparece num papel de consciência e pergunta a ela coisas que uma pessoa racional perguntaria. O filme dá a entender que o único motivo dela ter recebido apoio foi conveniencia, manobra política. Se todos a olhavam como louca, quem acreditava nela e a considerava inspiradora? No filme não aparece um. Quem vê o filme não se dá conta que a Igreja Católica estava no seu ápice enquanto influência cultural, que quem não era católico estava desgraçado no mundo, que as pessoas acreditavam piamente em milagres. Homens medievais não eram racionais, não no sentido que entendemos hoje. E sem entender isso, toda história de Joana D´arc não faz sentido. Ou seja, o filme inteiro é uma baboseira sem sentido.