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terça-feira, 20 de novembro de 2012

Eu não consigo emagrecer

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O título do livro do Dr. Dukan, inventor de uma dieta com o mesmo nome, é bastante atraente para a pessoa que já tentou de tudo e jamais emagrece. Ao mesmo tempo, colocar esse livro como um simples livro de dieta não deixa de ser uma redução. Esse livro é um daqueles que dá vontade de sair presenteando aos amigos, até para os que não precisam emagrecer. Sobre a dieta em si, o que posso dizer é que tenho amigas que fizeram, emagreceram e continuam magras. O que me atraiu no livro a ponto de vir aqui escrever - e não deixá-lo apenas para minha consulta pessoal - é a maneira como o Dr. Dukan entende o problema da obesidade de maneira muito pragmática e se dispõe a lutar contra a epidemia de obesidade do mundo.

A primeira coisa que me chamou atenção foi Dr. Dukan reconhecer que comer é bom. Nosso organismo vê em qualquer excesso a possibilidade de estocar comida para tempos difíceis, ele não está programado para nossa superabundância calórica. Nós vemos em qualquer embalagem de chocolate o desejo de comer todos os quadradinhos, porque aquilo é gostoso e nos tranquiliza. Não é possível, simplesmente, dizer que as pessoas devem abrir mão dessas calorias. Comida não é apenas caloria, comida é um monte de coisa: é fonte de prazer, sociabilidade, amor, recompensa, compensação, etc. De acordo com o Dr. Dukan os primeiros estudos de nutrologia surgiram depois da grande guerra e comparavam o corpo a uma máquina: se o corpo gasta menos calorias do que entra, ele engorda. Embora pareça bastante lógico, esse tipo de pensamento não levava em conta a natureza digestiva de cada tipo de alimento e, principalmente, a relação das pessoas com a comida. Por ter bases tão dissociadas da realidade, esse raciocínio tem se mostrado totalmente ineficaz diante da epidemia de obesidade de vivemos hoje. É preciso, então, partir de outros pressupostos.

Dr. Dukan demonstra conhecer bem o seu público alvo. Ele fala do impulso inicial e desesperado de se começar uma dieta, quando a pessoa se sente apta a abrir mão de tudo, até de comer o que gosta. Mas essa fase não dura muito; o entusiasmo vai baixando e a pessoa gradualmente abandona as diretrizes. E mesmo quando o objetivo da dieta é alcançado, a tendência a recuperar o peso é muito grande porque o sujeito relaxa. A maioria das dietas ensina a perder peso, mas depois do objetivo alcançado apenas exorta as pessoas à moderação: "Pode comer, mas coma menos e evite a sobremesa". Dr. Dukan diz: não adianta dizer para comer menos, se a pessoa engordou tanto é porque ela gosta de comer. É difícil convidar à moderação quando temos tantas ofertas de comida; ninguém abre mão pra sempre só porque não faz bem ou vai engordar. O seu método leva em conta essa psicologia e tenta se ajustar a ela: no início, maior restrição e maior emagrecimento, para aproveitar a euforia e a vontade de mudar. Depois, um período de emagrecimento com um pouco mais de concessões. Com o peso já estabelecido, mais concessões ainda. E, ao longo da vida, o compromisso de um dia de limpeza durante a semana.

Chega a ser comovente a preocupação que o Dr. Dukan demonstra, ao longo do livro, com o problema da obesidade, e seu desejo sincero de ajudar. Ele explica a base científica de seu método, o porquê da escolha de cada alimento, oferece cardápios, insiste na prática da caminhada, e outras coisas que se espera de um livro de dietas. Mas ele também fala do papel que a comida cumpre num mundo tão infeliz, da dificuldade dos obesos, do distanciamento das pessoas de seus corpos, da busca pelo prazer. Com seu livro e o seu site (https://www.dietadukan.com.br/), Dr. Dukan procura ser um agente de mudança para que todos tenham direito à saúde e  à beleza. Espero que consiga.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Meu melhor livro - Orlando

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Eu acho a leitura comparável ao vício. Existem aqueles que possuem uma blindagem natural, que podem entrar em contato com a droga mais sedutora sem se viciar. Eles entram e saem quando querem, jamais deixam que aquilo tome conta de suas vidas. Outros são frágeis, influenciáveis, e logo adquirem o status de heavy-users. Só que quando falamos de drogas no sentido mais comum do termo, existe um caminho natural e um fim. Reza o senso comum que todos começam com drogas leves, talvez até legalizadas - cigarro, álcool, cogumelos, maconha - que acostumam o organismo e são porta de entrada para coisas realmente fortes - heroína, cocaína, crack. Só que com livros - ufa, finalmente consegui chegar lá! - não existe esse caminho previsível. A cada leitura surge o problema do que ler em seguida. O leitor precisa de algo novo, algo melhor, algo diferente. Essa é a grande dificuldade de ser um heavy user. Poucos livros - apenas o inesquecíveis- ficam melhores com o tempo, poucos merecem uma releitura.

Quando entrei em contato com Orlando pela primeira vez, eu já era uma leitora rodada. Eu já havia abandonado os livros com figuras, até as pequenas. Chorar ou rir sozinha já fazia parte da minha rotina, assim como me apaixonar por pessoas que nunca existiram e achar que conheço lugares que nunca visitei. Já havia passado pelos mistérios de Agatha Christie e as cenas picantes dos Sidney Sheldon, tinha perdido a minha inocência. Enfim, já não era mais uma leitora que pergunta, antes de ler, quantas páginas o livro tem. O que viesse eu encarava, desde que fosse de qualidade, desde que desse barato.

Orlando me deu barato desde as primeiras linhas, quando ele começa o livro olhando pela janela e perde subitamente a inspiração. Logo nas primeiras linhas, num parágrafo que não acaba mais, Virginia Woolf nos apresenta toda linhagem de Orlando, seu aspecto físico, nos faz adivinhar onde vive e nos identifica com o seu caráter. Tudo é descrito de uma maneira tão leve que parece que estamos ao lado de alguém que nos sussurra ao ouvido, ou um contador de histórias, ou uma mesa farta, ou qualquer tipo de metáfora que indique algo feito com muita facilidade e prazer. 

Meu amor por esse livro é tão grande que durante anos fui incapaz de ler qualquer outra coisa de Virginia Woolf, porque duvidava que ela tivesse sido capaz de repetir o feito de Orlando, que algum outro livro pudesse ser tão prazeroso de ler quanto esse, mesmo feito das mesmas mãos. Como é possível criar um lindo, nobre, vivendo séculos e passando por mais coisas do que qualquer mortal é capaz de passar, e sem com isso fazer com que o leitor o odeie pela sua extrema boa sorte? Eu já li Orlando várias vezes e em nenhuma senti que realmente conhecesse o personagem, mesmo quando ele sofre por amor, mesmo quando seus pensamentos são comparados a pratos nas mãos de um copeiro, mesmo quando foge, quando volta e finalmente...

É possível amar Orlando pela mão segura que o escreveu, que consegue traçar perfis precisos destacando as mais variadas características, que repete palavras (como na parte que fala da mão da rainha quando apresentada a Orlando) para criar um ritmo interessante na leitura, que congela e acelera o tempo, conta fatos e impressões, mistura observações deliciosas e prosaicas com coisas que calam fundo na alma do leitor. Mas é possível também amar Orlando pela história sempre inesperada, pela ingenuidade e romantismo do jovem Orlando, pelo seu contato com rainhas, com russos, com ciganos, com o outro lado do gênero, com admiradores, com puxa-sacos. São também personagens de Orlando sua linhagem, sua casa, a passagem dos anos, a Inglaterra. 

Eu sou de ler muito e reler pouco, e esse é um livro que me consegue capturar sempre. Começo a ler umas linhas e quando vejo estou na página cento e alguma coisa. Saber o que vai acontecer, ao invés de tirar o meu interesse, antecipa o meu prazer e quando vejo o livro já terminou. Por falar nisso, o amor à sinceridade me faz revelar: a única escorregada nesse livro tão maravilhoso são justamente as últimas páginas, que abusam de um certo experimentalismo, digamos assim. Nunca deixo de ler, mas elas não fazem jus ao resto da obra.

sábado, 13 de outubro de 2012

Amigos, amantes e chocolate

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Movida pelo entusiasmo de Agência nº1 de mulheres detetives, comecei a leitura de Amigos, amantes e chocolate logo depois, por se tratar de um livro do mesmo autor. Foi a maior besteira que eu fiz. O primeiro livro é muito superior ao segundo, então a leitura fica contaminada por essa comparação: ao invés de uma terra exótica como Botswana, que serve de pretexto para descobrir tantos costumes e cenários diferentes, o livro se passa na muito mais familiar Escócia, em meio a uma cidade e suas streets, ou seja, nada que chame atenção. Enquanto Mme Ramotswe é uma mulher inovadora e colorida, conquistadora e que sempre alcança o que deseja, Isabel Dalhousie é uma solteirona abastada, tagarela e insegura, que não parece despertar nenhum desejo nos homens. Até no ritmo da história Agência nº1 ganha - o mistério central de Amigos, amantes e chocolate leva quase cem páginas para aparecer. 

Durante um momento o silêncio reinou. Isabel tomou um gole de vinho. Quis perguntar a Louise: "E o que faz seu marido?". Um pensamento delicioso, por ser uma pergunta tão subversiva e rude nessas circunstâncias: evocar o marido, o fantasma daquele banquete. Poderia fazer a pergunta com ar inocente, como se não tivesse a menor idéia da natureza da relação entre Jamie e ela, mas claro que Jamie saberia que tinha sido uma pergunta maldosa e ficaria mortificado. Mas ele não podia reclamar, já que a levara lá, para exibí-la. Será que ele não conseguia entender que esse encontro seria doloroso para Isabel? Seria demais esperar que ele percebesse a insatisfação dela com tudo aquilo?
Isabel ergueu a taça de vinho e bebeu outro gole. Na sua frente, Louise começava a mexer num botão da jaqueta. Ela não está se sentindo à vontade, pensou Isabel. Não quer estar aqui. Aos seus olhos, ela é a aventureira, a ardente, a mulher na moda, capaz de conquistar facilmente um jovem, enquanto esta outra mulher, esta filósofa, não é nada. Observou-a e viu os olhos dela percorrerem a lareira e os quadros, olhar de completo desdém no rosto, embora não tivesse a menor idéia de que Isabel  perceberia. Não sou nada para ela, Isabel disse para si mesma. Ela nem me nota. Bem, nesse caso...
"E o que faz seu marido?" perguntou Isabel.
p.57-58

Isabel Dalhousie é uma filósofa que trabalha apenas meio período para uma revista. Fazem parte do seu mundo a sua sobrinha Cat, dona de uma delicatessen; os encontros com ex-namorado de Cat, o fagotista Jamie, por quem Isabel nutre uma paixão platônica; as conversas com empregada Grace. Na delicatessen, enquanto sua sobrinha está viajando, ela conhece Ian, e dele surge o mistério que será investigado no livro. Esse mistério tem um viés espírita, mas à maneira escocesa - nunca é demais lembrar que o Brasil é o único país com uma religião espírita. Embora coerente, acredito que o fim do livro será decepcionante para a maioria dos leitores. Mais do que com a história, o autor espera que o leitor se identifique como mundo interior de Isabel, que se interessa por música clássica, psicologia, filosofia, arte, dilemas morais e por quase tudo à sua volta. A única diferença cultural especialmente marcante é a maneira como os italianos são vistos:  pessoas elegantes e bonitas, clima maravilhoso, arte e romantismo, o lugar onde qualquer um nasceria se pudesse escolher. 

Apenas depois de terminado o livro, descobri que O Clube Filosófico Matinal é o primeiro com ela. Estavam os dois lado a lado na estante e ia buscá-lo semana que vem. Agora já está fora da minha lista. Amigos, amantes e chocolate é um livro interessante e bem escrito, mas Isabel não me conquistou.

sábado, 6 de outubro de 2012

Agência nº1 de mulheres detetives

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Você não poderá sair por aí e dizer que leu Agência nº1 de mulheres detetives para parecer inteligente. Nem ao menos conseguirá esse efeito quando contar a história e o número pequeno (pouco mais de duzentas) páginas. O autor - Alexander McCall Smith - é desconhecido. Para piorar tudo, é a história de uma mulher africana, uma mulher comum que tem uma van branca. A história é simples, sem arroubos de linguagem, de parágrafos curtos. 

"Por que não?" disse Mme Ramostwe. Ela ouvira dizer que as pessoas não gostavam de advogados, e agora achava que entendia por quê. Esse homem era tão cheio de certezas, tão seguro de si mesmo, tão completamente convencido. Que tinha ele a ver com o que ela fizesse? Era o seu dinheiro, era o seu futuro. E como se atrevia a dizer aquilo sobre as mulheres, ele que nem sequer se dava conta de que o zíper da sua braguilha estava mal fechado! Seria o caso de avisá-lo?
p.65

Quando penso em descrever esse livro, o que me vêm é um chavão - é um livro que aquece o peito. Ele me parou em mãos num momento difícil, e ao contrário da acusação de que os leitores geralmente são vítimas, não consigo ler para fugir dos meus problemas. Para me prender num momento de pouca concentração e tristeza, somente algo muito gostoso e positivo. Uma história que me prenda quando outras inquietações me invadem. Melhor ainda, se de forma indireta ela me consolar. Encontrei tudo e mais um pouco neste livro. Para os que lêem os livros mais complexos, ele será um refresco, algo de uma simplicidade apenas aparente e uma prosa deliciosa. Para os que não lêem, é finalmente um livro interessante, fácil e interessante.

Ela interrompeu seus pensamentos. Estava na hora de tirar a abóbora da panela e comê-la. Em última análise, esta era a solução para todos os grandes problemas da vida. A pessoa podia pensar e pensar e não chegar a parte alguma, mas, fosse como fosse, tinha que comer a sua abóbora. Era isso o que se chamava voltar à realidade. Dar à pessoa uma razão para seguir em frente. A abóbora.
p. 89

A protagonista, Mme Ramotswe, é uma mulher grande, colorida, que abre uma agência de detetives sem saber se vai dar certo. O livro fala de seus casos, e da maneira inteligente e original que Mme Ramotwe os resolve. É um universo pequeno, ordenado, e a o bom senso de Mme Ramotswe torna tudo muito familiar, como se nossa tia ou uma vizinha pudessem ser detetives. Ao mesmo tempo em que resolve problemas, conhecemos seus hábitos tranquilos, as conversas com os amigos, os momentos preguiçosos no jardim. No meio da história descobrimos o seu passado e o de outras pessoas que estão à sua volta.  É incrível pensar que um livro tão feminino tenha sido escrito por um homem. Na pequena grande mulher que é Mme Ramotswe, também descobrimos a África, lugar que ela tanto ama: suas paisagens áridas, suas lutas, seus diferentes povos e dialetos, seus costumes e resistências. O livro tem senso de humor, mas também mostra um pouco a tragédia cotidiana de homens e mulheres, o domínio estrangeiro e a necessidade de sobreviver, as escolhas e dificuldades que os costumes lhes impõem. O autor não pretende levantar qualquer bandeira; tudo nos é apresentado com a doçura de quem ama e vê o sofrimento de longe, da perspectiva de quem aceita o que viveu. Não há maneira melhor de dizer: é um livro de aquecer o peito. Leiam e apaixonem-se por ele.

Busquei esse livro unicamente pela recomendação da Fal, que descobriu inclusive que foi feita (e interrompida) uma série sobre ele.

domingo, 2 de setembro de 2012

O planeta do Sr. Sammler

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Uma curiosidade: peguei esse livro da Biblioteca Pública, com um ex-libris que informa que ele é uma doação da Comunidade Israelita em comemoração aos 120 anos da imigração judaica no Paraná, em 2009. Quando fui ao balcão de empréstimo, a funcionária olhou para a ficha de devolução, soltou um grito e mostrou o livro para os outros, dizendo que foi a primeira vez na vida e que aquilo não se repetiria. Depois fui olhar o que havia de tão extraordinário no fim do meu livro: eu fui a primeira pessoa a emprestá-lo. Espero que isso mude e que muitos outros carimbos surjam após o 30AGO2012 que eu coloquei.

Minha curta experiência com Saul Bellow - As aventuras de Augie March e O legado de Humboldt pela metade - me dizem que é aquele tipo de livro feito para se apaixonar perdidamente. Se você começa a ler e acha tudo muito confuso, que não vai para lugar nenhum e que diabos estão falando, é porque você não vai gostar. Embora não seja escrito em primeira pessoa, vemos as coisas de dentro da pele dos personagens principais de Bellow. Ou ele lhe fala de maneira muito profunda, de maneira que você se sente o personagem, ou ele não lhe fala. Não consegui sentir isso com Humdboldt e amei Augie March. O Sr. Sammler me conquistou desde o seu primeiro parágrafo:

Logo após o alvorecer, ou pelo menos o que poderia ter sido o alvorecer num céu normal, o Sr. Artur Sammler passou uma vista de olhos nos seus livros e papéis espalhados pelo quarto que ocupava na zona oeste da cidade, com um sentimento íntimo de que eram os livros errados, os papéis errados. De certa forma, não tinha realmente muita importância para um homem de seus setenta e tantos anos, dispondo de inúmeras horas de lazer. Era preciso ser um verdadeiro maníaco para querer insistir em ter razão. Ter razão era, afinal, apenas uma mera questão de explicações. O homem intelectual tornara-se uma criatura dada a explicações. Os pais para os filhos, as esposas para os maridos, oradores para os ouvintes, peritos para leigos, colegas para colegas, médicos para pacientes, o homem para a sua própria alma, todos tinham explicações a dar. As raízes, ou as causas disso, a fonte dos acontecimentos, a história, a estrutura, as razões do porquê. Na sua maior parte, porém, penetravam por um ouvido para sair pelo outro. A alma queria mesmo o que queria: tinha o seu próprio conhecimento; sentada, infeliz, na superestrutura da sua explicação, feito um pássaro que, coitado, não sabia de que lado iria voar.
p.5

O livro fala de um período curto e agitado na vida do Sr. Sammler, um judeu polonês que sobreviveu ao holocausto. Embora não se apresente dessa forma e nem viva em função do passado, ele é um homem marcado. Fisicamente, pela perda de um dos olhos. Num sentido muito profundo, Sammler é um homem sem lugar, o representante de um mundo que foi destruído. Seu vocabulário, seu físico, sua maneira de se portar ("Sammler não se permitiu nenhum comentário. Afinal, seu coração não era tão difícil de ser tocado. Além disso, fora treinado na antiga polidez. Quase como, outrora, a mulher fora educada para a castidade" p. 168) refletem o Velho Mundo que existia antes da guerra. No livro que escreveria (ou escreverá) sobre H. G. Wells, há uma conexão com esse mundo, mas ele mesmo não tem ilusões quanto a isso. Os outros parecem dar mais importância do que ele mesmo. Bellow mistura o passado e o presente de Sammler com uma incrível maestria, fazendo com que as lembranças de Sammler aflorem e revelem pouco a pouco o que ele viveu, mostrando ao leitor quem ele é e suas motivações. Ao contrário do que os que o cercam, Sammler conheceu a profundidade e não precisa buscar fortes emoções através do sexo, dinheiro ou atitudes insensatas. A geração do pós-guerra, perto dele, parece insana e perdida. O intervalo da vida de Sammler descrito no livro - um incidente com um batedor de carteiras, uma palestra a uma faculdade, o sobrinho e benfeitor hospitalizado e os problemas com sua filha e o livro do Dr. Lal - dá ao leitor uma sensação de desencaixe, de que Sammler não deveria ter que passar por essas coisas. Ele é o velho diante do novo, o introvertido num mundo de extroversão, o sofrido diante do fresco e pronto para viver, o filosófico diante das necessidades práticas. Ele é cada um de nós, sem solução, despreparados e com uma visão limitada para tudo o que a vida nos exige.

domingo, 29 de julho de 2012

Eu, Robô

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Quando me propus a ler Asimov, eu fiz tudo errado. Comecei por Fundação, que lá pelo meio do livro fica muito chato, e leva mais de cem páginas pra recuperar o ritmo. Depois li Fim da Eternidade e Nêmeses, que são histórias menores. Deveria ter começado por Eu, Robô - uma história dinâmica, criativa e inesperada. Esse livro justifica toda adoração por Asimov. Esqueça o filme com Will Smith, que não tem nada a ver com o livro, fora o fato de citar As Três Leis da Robótica:

1- Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal.
2- Um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens contrariem a Primeira Lei.
3- Um robô deve proteger sua própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira e a Segunda Leis.

Essas leis, que parecem tão simples quando lemos, são destrinchadas por Asimov em cada uma de suas possíveis complicações. Há um fio condutor, mas na verdade o livro é constituído de várias histórias de problemas de relacionamento com os robôs, quase sempre por causa das leis. Sobre ferir um ser humano, isso pode ser tanto no aspecto físico quando psicológico? E quando esse cuidado de não permitir que o ser humano sofra qualquer mal é tomado tão literalmente que impede o uso de robôs em lugares de risco? Como um robô reagiria de posse de informações desejadas mas que se fornecidas podem gerar algum mal? O que nos parece claro pode não ser quando pensamos numa programação - tal como acontece de verdade. O autor levanta essas questões e cria histórias, suas consequencias e soluções. O final é uma verdadeira provocação científica e uma confissão de fé. As quase trezentas páginas passam sem sentir e eu estou louca para ler Nós, Robôs.

sábado, 21 de julho de 2012

O grande Gatsby

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Vi há uns dez anos o filme O Grande Gatsby, na versão de 1974. Lembrava poucas coisas do filme: Robert Redford lindo em camisas coloridas, Mia Farrow num papel que combina bem com a imagem que temos dela por causa dos filmes (e da separação) com Wood Allen e uma sensação muito grande de opressão e simpatia por Gatsby. O livro é curto (156 páginas), e me parece que o filme conseguiu transmitir muito bem uma atmosfera que é mais sugerida do que descrita. Olha que um filme ficar à altura do livro, mesmo que um livro fino, é um grande feito. Fico desgostosa em saber que fizeram outra versão, com Di Caprio. Não precisava.

Sorriu compreensivamente - muito mais do que compreensivamente. Era um desses sorrisos raros que têm em si algo de segurança eterna, um desses sorrisos com que a gente talvez depare quatro ou cinco vezes na vida. Um sorriso que, por um momento, encarava - ou parecia encarar - todo o mundo eterno, e que depois se concentrava na gente com irresistível expressão de parcialidade a nosso favor. Um sorriso que compreendia a gente até o ponto em que a gente queria ser compreendido, que acreditava na gente como a gente gostaria de acreditar, assegurando-nos que tinha da gente exatamente a impressão que a gente, na melhor das hipóteses, esperava causar. Precisamente nesse ponto o sorriso se dissipou - e vi-me diante de um jovem elegante e grosseirão, que passava um ou dois anos dos trinta, e cuja maneira cerimoniosa de falar faltava pouco para ser absurda. Pouco antes de ele haver dito quem era, eu tivera a impressão de que ele escolhia as palavras com cuidado.
p.44

São poucos os trechos que, como esse, dá vontade de saborear. Não é um livro de descrições; a narrativa é ágil. A história é contada a partir do ponto de vista de Nick Carraway, uma pessoa comum. Por laços de parentesco e proximidade geográfica, ele se vê envolvido numa história de amor mal resolvido entre os que vivem com muito mais dinheiro do que pessoas comuns alcançam. Compartilhamos com ele o fascínio ao andar pelos ambientes amplos, as aparências, as grandes festas, carros potentes, mulheres vaporosas e homens que parecem ter a certeza de que o mundo nasceu para servi-los. A ação se passa na década de 20, período de grande prosperidade nos Estados Unidos. O dinheiro aparece como uma luz forte que absorve a todos, ao mesmo tempo que entedia e enoja. Há algo nesse dinheiro; a sensação de vazio e decadência é palpável. Eu poderia dizer que há duas maneiras de se ver a história do livro, mas acho que ninguém consegue pensar em Gatsby apenas como um homem apaixonado. Ele é o novo-rico, ele é aquele que se deixa iludir com a idéia do self-made man. É um livro crítico, que gera nos seus leitores reflexões amargas.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Era no tempo do rei

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Eu nunca havia ouvido falar nesse livro de Ruy Castro, autor de biografias famosas como Estrela Solitária - um brasileiro chamado Garrincha e O anjo pornográfico, sobre Nelson Rodrigues. Era no tempo do rei: um romance da chegada da Corte não é um livro ambicioso. Imagino que Ruy Castro havia pesquisado esse período, por conta de algum projeto mais ambicioso e sério, e conhecer tantos personagens reais e interessantes fez com que ele tivesse vontade de dividir essas informações. Que outra maneira havia de tornar públicas vidas como as do major Vidigal e da prostituta Bárbara dos Prazeres? É um livro que eu faria meus alunos lerem, se eu fosse professora de história. É divertido, leve e informativo.

Em menos de dois anos por aqui, Blood ficara rico exportando produtos brasileiros convencionais, como café, cachaça e pimenta - e podre de rico com a vasta fauna patrícia que despachava para animar os salões da Europa: papagaios, micos, catinguelês, cágados, tamanduás, onças e lobos-guarás, além de uma formidável passarada, com espécimes dos mais diversos feitios, tamanhos, cores, formato de bico, comprimento de cauda e estilo de canto. Os campeões de venda em suas exportações, no entanto, eram os macacos, disputados em algumas cortes européias por sua aptidão para catar piolhos humanos. Mas tudo que voasse, corresse ou rastejasse caía nas arapucas dos caçadores de Blood, e os navios com suas cargas, que zarpavam quase toda semana para Liverpool, deixavam no chinelo a Arca de Noé.
Quando esses navios voltavam ao Rio, traziam âncoras, banheiras, fogões, cofres, caldeiras, bigornas e toda espécie de ferragem de segunda mão, fabricada na Inglaterra, que Blood vendia a peso de ouro para o incipiente mercado brasileiro. O resultado é que, em algumas regiões do Brasil, já havia uma praga de formigas, pela súbita escassez de tamanduás. Em compensação, em cada casa havia uma bigorna pronta para ser usada, embora nem todos soubessem para o que servia.
p.20-21

O livro conta uma aventura de Dom Pedro, com doze anos, e seu alter-ego pobre, Leonardo. A aventura em si é um mero pretexto para nos fazer conhecer um pouco o Rio de Janeiro do período. O livro fala da família real, das suas disputas, segredos de alcova, aparência física e muitos outros detalhes idiossincráticos e interessantes. Ele desmente a imagem que temos de Dom João, como um imperador inútil e burro, e nos faz entender de onde e com que interesse essa imagem foi forjada. Além disso, conhecemos um pouco dos costumes da época e personagens que o autor faz questão que saibamos que realmente existiram. O livro é baseado em tantos fatos reais, que num determinado ponto não sabemos o que é realidade e o que é ficção. No fim, isso não tem a menor importância: sem sentir, estudamos um pouco e nos divertimos com a história do Brasil.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

George e o segredo do universo

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Eu não sei pra que idade o livro George e o segredo do universo se destina. Embora não tenha sido feito pra mim, eu li com interesse. Também posso imaginar uma criança interessada em ficção científica com ele nas mãos. A história é simples, mas bem amarradinha. Algumas descrições são tão bonitas e sinestésicas, que fico muito curiosa em saber se elas foram obra de Lucy ou do próprio Stephen Hawking:

No entanto, a Casa Vizinha era totalmente diferente. Muitas vezes George subiu no teto do chiqueiro para observar por cima da cerca aquela gloriosa floresta emaranhada. O matagal exuberante formava pequenos esconderijos, e as árvores tinham ramos encurvados e cheios de nós, ideais para um garoto subir. Amoreiras silvestres cresciam em grandes touceiras espinhentas, com os galhos ondulados parecendo se espichar em estranhos braços como trilhos de uma estação ferroviária. No verão, as ervas daninhas se enroscavam em todas as outras plantas do jardim, como uma teia de aranha verde; dentes-de-leão amarelos brotavam por toda parte; uma serralha sanguinária gigante, de espinhos venenosos, se destacava, ameaçadora, como uma espécie de outro planeta, e pequenos miosótis azuis cintilavam sua beleza em meio àquela brilhante confusão verde do quintal da Casa Vizinha.
p.14-15

George tem pais idealistas e radicais no repúdio à ciência. Graças à um super computador, ele passa a ter acesso à viagens pelo universo e sem querer se mete numa disputa entre cientistas. Além da aventura em si, o livro é sensível e fala de inseguranças, ser diferente na escola, ética. Separadas e dentro do contexto da história, explicações sobre os planetas, cometas, galáxias, buracos negros. As informações estão resumidas e acompanhadas de lindas fotos. É um livro que não duvida da inteligência das crianças e que coloca qualquer um mais interessado nas origens do universo.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Um século e cinco dias

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Uma breve história do século XX é um best seller que tenta fazer o leitor leigo, com apenas 308 páginas, entender os principais fatos e mudanças ocorridas no último século. Projeto ambicioso, que podia ser muito bom ou um desastre. Geoffrey Blainey, o autor, faz o possível para torná-lo interessante. O livro não se concentra apenas nos acontecimentos políticos e grandes estadistas, tal como as histórias de antigamente. Ele nos informa mudanças de comportamento, tecnologias usadas na época, expectativas da vida. Em meio a grandes acontecimentos, há exemplos triviais significativos. Só que isso não é o suficiente. O problema do livro é justamente o tamanho do empreendimento, ter coisas demais para relatar. Em muitos momentos ele parece um livro didático, com informações generalistas e imprecisas. Um bom exemplo é quando ele diz que a escravidão foi abolida no Brasil já no início do século - 1888 é início do século XX?  Por outro lado, a necessidade de citar vários países acaba tornando tudo um amontoado de informações. É daquelas leituras que ao final do capítulo quase tudo já foi esquecido. O resultado final é que o livro possui momentos interessantes, mas que não conseguem segurar o leitor.

***

O que um livro tem de chato e não chegar a lugar nenhum, o outro tem de interessante. Cinco dias em Londres é um clássico na área de história e jornalismo. Ele consegue trazer informações novas mesmo para aqueles que já conhecem e se interessam pela Segunda Guerra Mundial. De acordo com Lukacs, seu autor, num período de cinco dias, em Londres, o rumo da Segunda Guerra Mundial e, por consequencia, da história mundial, foi alterado. Nesses cinco dias, Churchill emergiu como líder e colocou a Inglaterra contra o Terceiro Reich. Para entender que mudança isso significou, o livro nos coloca dentro do espírito que dominava a Inglaterra nesse período. Para tanto, somos informados sobre os avanços de Hitler, e que informações se dispunha sobre ele, as negociações e os bastidores do parlamento inglês, qual a opinião pública sobre o conflito - tudo amplamente discutido através de documentos, cartas, livros e depoimentos. O principal personagem do livro, Winston Churchill, estava longe de ser a unanimidade. Considerado exagerado e inconfiável, com uma posição insistente contra Hitler, ele surge aos poucos como única alternativa ao conflito. O livro consegue mostrar a ação titubeante do presente - não a história dos que olham para trás e possuem as respostas e sim a ação daqueles que ainda não sabem o que fazer. Como lição, ele recupera a importância de pequenas decisões, batalhas que nem sempre envolvem tiros.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Nêmesis

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Vai um post curtinho porque não tem muito o que falar do livro. Ele conta a história de um futuro em que a Terra formou colônias em naves espaciais e se preocupa com a ocupação de outros planetas.

Nêmesis é um dos livros recentes de Asimov, é de 1989. É uma obra mais madura, que usa de recursos literários e corrige problemas anteriores. Aqui há personagens femininas, e elas não são apenas coadjuvantes ou caricatas. Há mais personagens e eles são mais consistentes. Os diálogos são melhores, e até mesmo as cenas de sexo são melhores - não que as cenas de sexo estejam bem descritas, e sim que o autor desistiu de fazê-las (e constranger o leitor). A história de Nêmesis é formada por duas narrações paralelas que se encaminham para um encontro: o núcleo da colônia de Rotor, com Marlene e a mãe, e o núcleo terráqueo, com o pai de Marlene. Esse encontro envolve busca tecnológica, rivalidade entre culturas, espionagem, conhecimento científico y otras cositas.

É um livro interessante. Apesar das melhorias, não é uma obra inspirada. Em Fundação, a história toda duraria algumas páginas.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

O caçador de pipas

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É uma pena pensar nas coisas entusiasmadas que achei que diria sobre O caçador de pipas e que não direi mais.

O livro começa excelente. Ele me lembrou outro best-seller, mais ou menos da mesma época, A menina que roubava livros: ambos falam de crianças, de guerra e tem uma narrativa dinâmica. O recurso de antecipar no fim dos capítulos uma informação incompleta do que ocorre mais tarde, usado nos dois livros, causa no leitor ansiedade pelo que virá nos capítulos seguintes. As primeiras cinquenta páginas são devoradas sem sentir. Por se passar no Afeganistão, o livro ainda teria um atrativo a mais ao fazer o leitor se transportar para uma cultura diferente. Somos logo apresentados aos personagens centrais da história:

Baba contratou a mesma ama-de-leite que tinha me amamentado para cuidar de Hassan. Ali nos disse que ela era uma hazara de olhos azuis, natural de Bamiyan, a cidade das estátuas dos Budas gigantes.
- Que voz doce e melodiosa ela tinha... - era o que costumava nos dizer.
Hassan e eu sempre perguntávamos o que ela cantava, embora já estivéssemos cansados de saber: ele nos contou essa história milhares de vezes. Só queríamos ouvir Ali cantando.
Ele pigarreava e começava:

De pé, no topo da mais alta das montanhas,
Chamei por Ali, o Leão dos Deuses
Ó Ali, Leão dos Deuses, Rei dos Homens,
Traze alegria para os nossos corações
Que tanto sofrem.

Depois repetia que as pessoas que mamavam no mesmo peito eram como irmãs, ligadas por uma espécie de parentesco que nem mesmo o tempo poderia desfazer.
Hassan e eu mamamos no mesmo peio. Demos nossos primeiros passos na mesma grama do mesmo quintal. E, sob o mesmo teto, dissemos nossas primeiras palavras.
A minha foi baba.
A dele foi Amir. O meu nome.
Olhando para trás, agora, fico pensando que os alicerces do que aconteceu no inverno de 1975 - e tudo o que veio depois - já estavam contidos nessas primeiras palavras.
p.18-19

Ao contrário da tendência de colocar personagens orfãos, humildes e bons - penso na Menina que roubava livros, em Harry Potter, Luke Skywalker e outros -  Amir é um menino bem nascido e egoísta. Nele vemos que não é preciso colocar um protagonista na favela para discutir os sentimentos de falta de amor e as dúvidas sobre si mesmo - Amir tem tudo e sente que tudo lhe falta. Hassan, por outro lado, é todo devoção e pureza. Sobre como é e o que pensa alguém tão bom, nunca saberemos. São com os sentimentos de Amir que o leitor se identifica, que sente a superioridade moral do seu amigo e o maltrata. Suas atitudes, além de tudo, são justificadas pela diferença socio-racial entre os dois. A necessidade de se provar e obter o amor do pai, coloca Amir frente a escolhas e omissões que levantam uma questão fundamental: até que ponto é justificável buscar o próprio conforto? Para obter o que quer e não ter que lidar com suas próprias falhas, Amir opta por sacrificar Hassan. Amir transgride vários limites, e deixa o leitor na dúvida sobre o que ele mesmo faria.

Essas questões existenciais poderiam encaminhar o livro a muitos lugares, onde quem sabe agradaria críticos e não seria um sucesso mundial de vendas. Para mim, é como se eu tivesse ido ao cinema ver um filme europeu, e depois de alguns minutos ele se revelasse um blockbuster americano. Não, a mudança de tom do livro não foi logo que Amir e seu pai saem do Afeganistão, mas foi aí que comecei a sentir os furos. O protagonista de repente está nos Estados Unidos, e senti falta da descrição do período imediatamente anterior, que sem dúvida teria envolvido mais fugas, subornos, dificuldades e esperas. Mais tarde, quando seu pai adoece, achei incoerente que alguém sem plano médico, com pouco dinheiro e em outro país, tenha arranjado médicos e tratamentos com facilidade. Na hora entendi que o autor quis fazer algo mais enxuto - hoje já acho falta de vivência. Já a espera do final do livro ele achou importante colocar, sendo que pro leitor o fim já estava muito claro.

O problema é quando começa a oportunidade de redenção de Amir (sinalizada logo no primeiro capítulo). Nesse instante, a história se torna uma aventura, que sabemos antecipadamente que terá um final feliz, apenas não sabemos exatamente como. Do Afeganistão destruído só temos a mensagem de que os talibãs são maus. Todos os dados lançados no início do livro se encaixam com perfeição, todos os nós são amarrados, cada um recebe na mesma proporção do que havia feito. É legal, é bacana, e gostamos dos personagens a ponto de torcer por eles. O problema é que nesse ponto o livro responde de maneira simplista as perguntas tão bem lançadas no começo. Eu esperava mais, muito mais.

sábado, 12 de maio de 2012

O leitor

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Eu li o livro por causa do filme, mas não o vi. Apesar de ter aversão assumida por versões cinematográficas de livros, fiquei curiosa para saber o trabalho que foi feito com esse e gosto muito da idéia dos principais personagens serem representados por Kate Winslet e Ralph Fiennes. Existem partes do livro extremamente visuais, que convidam o leitor a imaginar a luz suave do banheiro misturado à fumaça, passeios em dias ensolarados no meio das árvores, a visão persistente do cabelo preso num coque. Noutras, temi que simplesmente mostrar as coisas - Michael sentindo o cheiro do corpo de Hannah, a visão dela na piscina, quando seus olhares se cruzam no tribunal - banalize algo tão cheio de significado, algo que vai muito além do que é visto. Pelo sucesso que o filme fez, suponho que não tenha sido assim.

Nos meus relacionamentos posteriores tentei começar melhor e assim aprofundá-los. Aceitei que uma mulher precisava ter o braço e o toque um pouco como os de Hannah, ter o cheiro e o gosto um pouco parecidos com os dela, para que desse certo a nossa convivência. E passei a contar sobre Hannah. Também contei mais a meu respeito para as outras mulheres do que contara a Gertrud; elas deveriam poder tirar suas próprias conclusões sobre o que lhes parecesse estranho no meu comportamento e na minha disposição de espírito. Mas as mulheres não queriam ouvir muito. Lembro-me de Helen, uma norte-americana, crítica literária, que ficou coçando as minhas costas tranquilamente, sem dizer nada, enquanto eu lhe contava a história, e continuou coçando tão tranquilimente quanto antes, sem dizer nada, quando parei de contar. Gesina, uma psicanalista, achou que eu tinha que trabalhar melhor a minha relação com a minha mãe. Será que eu não reparava como minha mãe quase não aparecia na história? Hilke, uma dentista, sempre perguntava pela época antes de nos termos conhecido, mas esquecia logo que eu contava. Então desisti novamente de contar as coisas. Não é preciso contar, porque na verdade do que se conta está no modo como se é.
p.191

A melhor coisa do livro é a sua prosa. É uma leitura rápida, de capítulos curtos, daquelas que não exigem que o leitor se adapte à linguagem ou tenha paciência. O autor se apega ao essencial. Os primeiros capítulos passam voando, é uma história de amor. Só que ela é contada de maneira desapaixonada, ligeira; a todo instante sabemos que algo acontecerá, que um amor daqueles está condenado. Intuímos as reservas de Hannah, a sua lenta entrega a ao amor de um menino, a idealização e as limitações que uma relação dessas implica. Há nos seus gestos e no seu corpo de Hannah um cansaço, uma força e uma sensualidade que apenas uma mulher vivida podem ter; um corpo que fala de muitas coisas, e que encontrou num adolescente um único expectador atento. Só que o que nunca podemos imaginar sob o corpo de uma mulher - ou de qualquer outra pessoa que conhecemos intimamente - a crueldade e todas as coisas inclassificáveis que o nazismo representa.

Aí o livro se torna difícil, embora a qualidade da prosa não mude. Ele fica difícil porque toca em questões sem resposta. Ele fala do sofrimento judeu, mas fala também do sofrimento alemão. Eles foram cúmplices, todos eles, ao viverem no mesmo período que o Reich e levarem vidas pacatas enquanto os campos de concentração existiam. Do mesmo modo que há uma culpa dos que apenas seguiram ordens, há uma culpa dos que se omitiram. A segunda geração alemã do pós-guerra - representada por Michael - vive uma culpa que não consegue expiar, porque não estavam lá... mas o seus pais estavam, as pessoas que eles amam estavam. Até que ponto o amor nos torna cúmplices das atitudes do ser amado? Existe algo de inexplicável nos que tornaram o terror seus empregos, na idéia de dividir as pessoas de tal forma a ser cruel com alguns e amoroso com outros. Principalmente, existe a questão da justiça: não apenas a que aplicamos aos outros, mas a que nos é possível sem nos condenar.

domingo, 22 de abril de 2012

Travessia de verão

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É uma surpresa até mesmo pra mim: Travessia de Verão não me conquistou. Adoro Capote e sempre achei que qualquer livro dele é muito bom ou excelente. E, no início, ele pareceu corresponder às minhas expectativas, com uma prosa enxuta, leve, maneiras deliciosas e prosaicas de descrever as situações. Sem maiores pretensões, é um livro aparentemente simples, com poucos personagens, Nova York como cenário e um verão definitivo. Achei que leria num fôlego só, por conta de passagens como esta:

E como se todo tempo que passassem juntos não fosse suficiente, ela adquiriu o hábito de acompanhá-lo de vez em quando no trem que o levava à cidade: enquanto esperava para tomar o trem para casa junto com ele no final do dia, assistia a um filme da Broadway atrás do outros. Mas não havia tranquilidade para ela; ela não conseguia entender por que aquela alegria que sentira no começo havia se transformado em dor e agora em tormento.. Ele sabia. Tinha certeza de que ele sabia; os olhos dele, quando a viam atravessar um aposento, nadar em sua direção na piscina, aqueles olhos sabiam e não desaprovavam: assim, junto com seu amor, ela aprendeu um pouco de ódio, pois Steve Bolton sabia, e nada fazia para ajudá-la. Foi nessa época que todos os dias se tornaram infestos, um pisotear de formigas, um arrancar de asas de libélulas, acessos de raiva, aparentemente, contra tudo que fosse tão impotente quanto seu impotente e desprezado eu. E ela passou a usar os vestidos mais finos que conseguia comprar, vestidos tão finos que qualquer sombra de folha ou levantar de vento era um frescor que a acariciava; mas ela não comia, só queria saber de beber Coca-cola e fumar cigarros e dirigir seu carro, e tornou-se tão lisa e magra que os vestidos finos flutuavam em volta de seu corpo.
p.33

Para mim, o início é o melhor do livro: as mudanças na narrativa acontecem de maneira natural, como se fosse um simples movimento de câmera. Cada interação descrevia as expectativas e desencontros entre os personagens - nunca de uma maneira amarga, com uma aceitação preguiçosa de que a vida é assim. Grady, a protagonista, decide não viajar com a família e quer viver. De um lado, há seu alter ego e amigo de infância Peter; de outro, seu amor secreto, Clyde, de quem pouco sabe. O que deveria ser um momento de liberdade, adquire cada vez mais profundidade e importância. Capote não consegue segurar essa mudança de intensidade e o texto perde o brilho.

No posfácio, o responsável pelo patrimônio literário de Capote explica que aquele livro foi encontrado nos papéis antigos, que surgiram após sua morte. Travessia de verão, de acordo com a correspondência de Capote, é o primeiro romance que ele escreveu, ainda adolescente, e nunca havia enviado a uma editora. Depois de duvidarem da qualidade do manuscrito, e do desejo do próprio autor de que o conhecessem, decidem que a obra possui méritos próprios merece ser publicada. Isso diz muito sobre o livro. Como fã reconheço o valor do livro, mas minha recomendação para os que não conhecem Capote é: fujam. Leiam A sangue frio ou Música para camaleões antes.

sábado, 7 de abril de 2012

As aventuras de Augie March

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Não gosto muito da idéia de escrever sobre As aventuras de Augie March e gosto menos ainda de saber que existem muitos Augie March por aí - tem até uma banda. Fico enciumada. Tudo isso demonstra a popularidade do personagem, que causa nos outros o mesmo efeito que causou em mim: a impressão de que o livro fala de si. A identificação avança de tal forma, que depois de um certo ponto parece que o destino do personagem revelará alguma coisa sobre o seu próprio destino. Quem sabe todos os que se identificam com Augie tenham em comum uma certa passividade e adaptabilidade, um certo ar de pessoa "adotável" e seja bom ouvinte. Por não julgar as pessoas e agir conforme as circunstâncias, elas colocam Augie dentro dos seus sonhos, e vêem nele um seguidor ideal; o que ele corresponde, mas só até certo ponto:

"Ou você estava em busca de um frisson? Isso é hora de sair em busca de frisson, quando o resto do mundo está procurando por um abrigo pra se proteger? Você podia procurar isso na montanha-russa, no tobogã, no trem fantasma. Vai pro parque de diversões de Riverview. Mas espera aí. De repente eu me dei conta de uma coisa sobre você. Você é do contra, tem a oposição dentro de você. Você não sai deslizando suavemente por tudo. Só dá essa impressão."
Essa era a primeira vez que alguém me dizia algo que se pudesse chamar de a verdade ao meu respeito. Eu a senti com força. Senti que, como ele disse, eu tinha de fato a oposição dentro de mim, e um enorme desejo de oferecer resistência e de dizer "Não!" que não podia ser mais claro, que era uma sensação tão inequívoca quanto uma pontada de fome. (....)
Ele continuou, mas meus pensamentos tomaram rumo próprio. Não, eu não queria ser o que ele chamava de predeterminado. Nunca aceitei a predeterminação e me recusava a ser o que as outras pessoas queriam que eu fosse. Já tinha dito "Não" para Joe Gorman também. Para vovó. Para Jimmy. Para um monte de gente. Einhorn tinha visto isso em mim. Porque ele também queria exercer influência.
p.168

O livro demorou para me conquistar. A princípio, ele me pareceu um desfile interminável de nomes e tipos, como se fosse uma dessas introduções que descrevem personagens de uma peça. O início do livro fala do início da vida de Augie, e é como se ele ainda não existisse, fosse apenas um pretexto para o ambiente e pessoas à sua volta. Depois você se dá conta que a narrativa do livro mostra o desenvolvimento pessoal do próprio personagem; no começo da vida, ninguém sabe realmente quem é. A docilidade de Augie faz com que ele se deixe levar, o que o coloca em situações que um rapaz pobre e orfão normalmente não viveria.  Transitando entre diversos mundos, num momento imerso em luxo e no instante seguinte em quartos imundos e sem qualquer perspectiva. Quando um capítulo do livro se encerra, uma fase da vida dele se encerra também.

Não é um personagem que tenha para onde ir - todos parecem saber quem são e para onde vão, menos Augie. Muitos lhe apresentam projetos interessantes, maneiras fáceis e definitivas de conseguir conforto, riqueza, nome, bom emprego e amor. Só que para usufruir dessas coisas, ele sempre precisa pagar um preço: deixar de lado algo que ele nem sabe se o que é e porque é tão importante. Às vezes o problema se apresenta como um abandono as origens ou a adoção de uma maneira nova de se relacionar. Talvez por serem sonhos emprestados, ele se mostra incapaz de dizer SIM de forma permanente. Acredito que pessoas que gostem de certezas se irritem e se angustiem com um protagonista assim - para os que amam o livro, é justamente esse o motivo de atração. Quando tudo parece ir bem, chega um ponto que algo acontece, ou que Augie faz por onde estragar tudo, e o que parecia certo acaba como se nunca tivesse existido. Ele é radical na sua negação e o livro é cheio de recomeços.

É um livro cujo interesse está no desfile dos tipos, a mudança de ambiente, o desaparecimento e reaparecimento de pessoas, as ironias e rasteiras que o destino prega. Alguns personagens merecem apenas alguns parágrafos, enquantos outros aparecem sempre, nem que seja apenas através de suas lições. À medida que amadurece, Augie se torna mais consciente de quem é, o que diminui sua adaptabilidade e o ritmo de suas mudanças. Impossível não ver nisso o próprio caminho da maturidade, quando nos tornamos mais estáveis e menos aventureiros à medida que nos conhecemos. Gradualmente o livro muda de tom; Augie começa a pensar e escolher mais, e chega a ensaiar uma filosofia de vida. Mesmo com reflexões interessantes, a mudança de tom não me agradou muito, e eu teria cortado pelo menos cem páginas do final (e ainda assim seria um calhamaço). Não é o primeiro e nem o último livro excelente que parece se perder no fim, cito aqui o caso de Orlando. E tal como Orlando, Augie March está no meu rol de personagens inesquecíveis.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Chatô: o rei do Brasil

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As mais de setecentas páginas do livro Chatô: o rei do Brasil são assustadoras. Como pode ser interessante um livro tão extenso sobre um personagem da qual ninguém é fã, que não tem nenhum carisma ou da qual não ouvimos falar nos dias de hoje? Lembro do estrondoso sucesso que o livro fez na época da sua publicação, há quase vinte anos, e da tentativa cercada de suspeitas de suborno e desvios de dinheiro (nada mais chatobrianesco do que isso) do filme Chatô que nunca foi lançado. Depois de uma semana devorando suas páginas, posso afirmar: o livro é delicioso e mereceu cada uma das suas críticas entusiasmadas.

Com o correr do tempo, chegou a hora de enviar o filho à escola. No começo de 1898, como já tivesse quase 6 anos, os pais o matricularam em uma escola pública do bairro. Cuidadosamente recomendado para a professora como uma criança nervosa e problemática, Chateaubriand nem chegou a completar a primeira semana de aula. Poucos dias após o início do curso, um bedel do grupo escolar veio trazê-lo de volta à mãe. Vítima de deboches e brincadeiras dos colegas, ele simplesmente desistiu de falar o que quer que fosse dentro da classe. De gago ele estava se transformando em mudo. Traumatizados com o sofrimento do filho, Francisco José e Maria Carmem procuraram outras escolas, contrataram sucessivas professoras particulares que tentavam alfabetizar o garoto em casa, mas nada deu certo. Ele tomava pânico na presença de estranhos e, além de não pronunciar uma só palavra, punha-se a chorar.
p. 35

O primeiro grande mérito do livro é, sem dúvida, a escolha de seu protagonista. Polêmico, Chateaubriand conseguiu construir do nada um império de comunicação, que compreendia os jornais, revistas e rádios mais influentes de sua época. Ele é o responsável pela implementação da TV no Brasil, pela criação do MASP e esteve por trás dos movimentos mais importantes da história política brasileira. Era um homem que tinha intimidade com o poder, temido por banqueiros e presidentes. Em nome dele leis foram modificadas e reputações destruídas; o contato com Chateaubriand poderia colocar qualquer um no topo - o que não impedia a pessoa de ser retirada de lá, pouco tempo depois, sob ofensas do próprio Chateaubriand. O autor não tenta responder à questão se era um louco, um gênio ou um visionário. E até o fim do livro não é possível responder isso.

Ao entrar em São Joaquim, Chateaubriand resolveu bater na primeira porta amiga que lhe apareceu pela frente: a farmácia de Hilário Braer, o aliancista pra quem ele deveria trazer uma carta de Rupp - como a dos Palma, também incinerada em Bom Retiro. Andando com as pernas abertas para evitar que uma coxa encostasse na outra, o que provocava uma sensação muito dolorosa, amarrou um cavalo no poste e apresentou-se ao farmacêutico. Descreveu com detalhes as adversidades e provações que experimentara desde a decolagem do Junkers no Rio de Janeiro, quantos dias antes? Fez as contas: apenas três dias, que mais pareciam três semanas de sofrimentos. Falou de Rupp, da barreira de soldados na estrada, do corte do fio do telégrafo, das cartas para os Palma e para ele queimadas na casa de Gerôncio Thibes, da morte inesperada de Jango Matos. O catarinense descendente de alemães ouvia tudo aquilo tomado por uma desconfiança mineira. A história era rocambolesca demais para ser verdadeira.
p.239-240

Somente um grande escritor para tornar os inúmeros fatos da vida de Chateaubriand numa narrativa coerente e muito interessante. Se Fernando de Morais não leu cada um dos 11870 artigos que Chateaubriand publicou, chegou muito perto. Apesar de longo, o livro não possui uma única passagem gratuita, e muito menos mal documentada. Como nos bons romances, o livro consegue criar suspenses, faz personagens ressurgirem, pontua grandes eventos com fatos pitorescos. Sem perceber, vamos descobrindo os bastidores da história do Brasil, ficamos a par do surgimento de grandes nomes da política e da cultura brasileira, ao mesmo tempo que descobrimos as idiossincrasias do comportamento de Chateaubriand. O mesmo homem que era implacável com os filhos e com os inimigos, tinha um apetite sexual incontrolável e nada criterioso, falava um inglês "fluente e ininteligivel" e insistia em sagrar as pessoas a quem admirava como Cavaleiro da Ordem do Jagunço.

Por fim chegou o 2 de junho, dia da coroação e do maior problema que Chateaubriand iria enfrentar naquela agitada temporada: acomedido de uma infecção na próstata, ele era obrigado a urinar a cada meia hora (Paulo Albuquerque, seu médico no Rio, chegara a aconselhá-lo a desistir da aventura londrina, pois se sabia que a cerimônia de coroação duraria cinco horas, sem interrupções). Mas o jornalista já havia planejado em segredo a solução: vestiu um grosso sobretudo sobre a casaca, e com uma gilete abriu dois talhos nos forros do casaco de lã. Pediu ao bar do hotel duas garrafas vazias de Coca-cola e enfiou uma em casa bolso do capote. Às oito da manhã, conforme mandava o protocolo, dirigiu-se à Abadia de Westminster.
p.542

Considero esse livro essencial pra qualquer um da área de história e de jornalismo. Depois do livro, fica-se com a sensação de que nada visto na TV ou publicado é verdade. Ironicamente, o jornalista Chateuabriand é a maior prova que se pode ter contra o poder do jornalismo. Percebemos que a imprensa não precisa ter o menor compromisso com os fatos - suas bases são outras, seus interesses são outros. O livro pode ser lido como um forte alerta sobre o poder dos meios de comunicação.

No começo de 1967, quando faltavam quinze dias para transferir o governo para o Marechal Costa e Silva, o ainda presidente Castelo Branco baixou o decreto-lei nº236, que parecia redigido de encomenda para confirmar as suspeitas de Chateaubriand de que de fato tudo não passara de uma conjura para destruí-lo. No artigo 12 do decreto, Castelo limitou a cinco o número de estações de televisão que poderiam pertencer ao mesmo grupo privado (três estações regionais e duas nacionais). Naquela data começava a desmoronar a rede Associada de televisão, cujo prestígio e poder seriam ocupados, anos depois, pela mesma Rede Globo de Televisão. Assis Chateaubriand perdia sua primeira grande batalha. Que talvez fosse a última de sua vida.
p. 674

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

A beleza nobre

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A princesinha andava de um lado para outro do terraço com os companheiros, e brincava de esconde-esconde à roda dos vasos de pedra e das velhas estátuas musgosas. Nos dias comuns, só lhe era permitido brincar com crianças da mesma condição, de modo que brincava sempre sozinha, mas o dia dos seus anos era uma excessão, e o rei dera ordens para que ela convidasse todos os amiguinhos que quisesse para virem divertir-se com ela. Tinham uma graça majestosa ao passar aquelas esguias crianças espanholas, os meninos com os chapéus de grandes plumas e curtos mantos ondulantes, as meninas segurando a cauda dos longos vestidos de brocado, e protegendo os olhos do sol com imensos leques de cores negras e prateadas. Mas era a infanta a mais graciosa de todas, e a que se trajava com maior requinte, segundo a moda um tanto pesada da época.
O aniversário da infanta


De Oscar Wilde eu li, na adolescência, O Retrato de Dorian Gray. Lembro de ter gostado muito e não ter me interessado em ler mais nada do autor, porque estava numa fase de querer devorar clássicos. Então fui sem qualquer lembrança de estilo que peguei Os melhores contos de Oscar Wilde. E me senti, invariavelmente, entrando num aniversário de uma infanta, visitando uma vida de corte, vendo as coisas na perspectiva de uma pessoa que tinha tudo: beleza, educação, bons relacionamentos, brilho próprio e genialidade. Wilde às vezes tenta em alguns momentos sair da sua posição e escrever do ponto de vista de pessoas simples, mas as descrições lhe saem vazias. Ele claramente não pertence ao mundo dos que trabalham pesado:

Todas as tardes saía para o mar o jovem Pescador e atirava a rede à água.
Quando o vento soprava de terra, ele não apanhava nada, ou pouca coisa, pois era um vento amargo de asas negras, e ondas eriçadas vinham recebê-lo. Mas quando o vento soprava para a praia, subiam os peixes das profundezas, e nadavam-lhe por entre as malhas das redes, e ele os levava ao mercado e vendia-os.
O Pescador e sua Alma


Não sei que impressão eu teria se fossem outros contos. Nessa seleção que peguei, é como se Oscar Wilde pretendesse colocar no seu trabalho uma pitada de crítica social; ele não é insensível às contradições da sua época. Mas, aos olhos de hoje, essa crítica não consegue mais do que arranhar a superfície. Talvez para sua época nenhuma solução fosse vislumbrada que não fosse uma dedicação total aos pobres, abdicar de todos os seus bens (como pretende O jovem rei). Victor Hugo, nos Miseráveis, propõe um herói assim. Oscar Wilde não é tão radical, e justamente por isso não sabe o que propor. Ninguém soube dizer ao Jovem Rei que ele, mais do que ninguém, estava em posição de tentar ajudar àqueles que sofreram para costurar suas roupas. A história d´O modelo milionário lembra contos religiosos, onde anjos vestem andrajos para ajudar os puros de coração. Por mais que n´O Aniversário da Infanta a nobreza se mostre cruel e O rouxinol e a rosa tenham levado à sério demais dois jovens enamorados, é do lado da elite que Wilde está. O pobre é o feio, o anão, a multidão furiosa. A pureza de caráter e a beleza física estão sempre do lado nobre, mesmo que sua posição de elite esteja ameaçada:

A menos que seja rico, a ninguém adianta ser encantador. O romance é privilégio do abastado, e não ofício do desempregado. O pobre há de ser prático e prosaico. Mais vale ter uma renda permante do que ser fascinante. Tais são as grandes verdades da vida moderna, que Huguie Erskine jamais compreendeu. Podre Huguie! Intelectualmente, cumpre confessá-lo, não tinha grande importância. Nunca disse uma frase brilhante, nem sequer maldosa, em toda existência. Mas era maravilhosamente bem-apessoado, com cabelos anelados e castanhos, o bem-delineado perfil e os olhos cinzentos. Tão popular entre os homens como entre as mulheres, possuía todos os talentos exceto o de saber ganhar dinheiro. Legara-lhe o pai a espada de cavalaria e uma História da Guerra Peninsular em quinze volumes. Huguie colocou a primeira sobre o espelho, a segunda em uma estante, entre o Guia de Ruff e a Bailey´s Magazine, e passou a viver com as duzentas libras anuais que lhe dava uma tia velha. Tentara tudo. Frequentara durante seis meses a Bolsa de Valores; mas que há de fazer uma borboleta entre touros e ursos? Fora comerciante de chá por um pouco mais de tempo, mas logo se cansar de pekoes e souchons. Depois, tentara vender xerez seco. Mas isso também dera em nada: o xerez era seco demais. Afinal de contas, era nada, um rapaz encantador, malsucedido, com um perfil perfeito e nenhuma profissão.
O modelo milionário


Não é à toa que tantos críticos dizem que a obra de Wilde chegou a outro patamar depois de sua prisão e a publicação de De profundis. É o próximo livro que lerei e estou ansiosa para ver o que essa mudança de universo provocou no estilo de um dândi.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Fast psicologia

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Cena 1 : Coisas que odeio em mim.
Esse programa se propõe a resolver dez problemas em apenas um dia. A californiana Jane se queixa de que ela não consegue esquecer o namorado com quem viveu mais de cinco anos e de quem estava separada há dois. Eles chamam sua melhor amiga para lhe dar apoio e um psicólogo. Diante das câmeras, ela fala da saudades que sente dele e chora. O psicólogo pede para ela escrever no papel todos os seus medos e mágoas com relação a esse assunto. Depois, discursa sobre ela estar começando um novo período na sua vida, simbolizado pela queima do papel onde ela havia descrito seus problemas.

Cena 2: Super Nanny.
A especialista Super Nanny ajuda pais que não conseguem educar seus filhos. As cenas mostram Mary oprimida por seus dois filhos. Ela carrega suas mochilas, apanha deles quando os contraria e se sente extremamente culpada quando coloca qualquer limite. Super Nanny lhe dá uma mochila cheia e as duas saem para caminhar. Chegam ao topo de uma montanha. Quando Mary abre sua mochila, ela está cheia de pedras. Aquelas pedras, Super Nanny lhe diz, representam toda culpa que ela tem carregado inutilmente. Ela é convidada a nomear cada pedra com uma de suas culpas e joga-las fora.

Cena 3: Guro do estilo.
A participante abre seu guarda-roupa a um especialista, que analisam seu tipo físico e estilo para lhe propor um novo visual. Depois de conhecer Sue, o especialista conclui que ela têm um grave problema de auto-estima. Então marcam para ela uma consulta com um psicólogo que atende várias estrelas. Na consulta, ele faz com que ela desfile com uma roupa feita de saco de lixo - "o que pode ser pior do que se vestir de saco de lixo?". Depois a mostra a vários espelhos de imagem deformada, que simbolizam a maneira como os outros a vêem. Por fim, diante do espelho normal, ela conclui que o melhor é ser ela mesma.

A psicologia, como ciência, nasceu sob influência do pensamento filosófico europeu. Para muitos o marco está em Descartes, que ao dividir a res cogitans da res extensa, ou seja, a parte psíquica da física, iniciou uma forma de ver o indivíduo e estudá-lo. A psicologia estaria separada da biologia e outras ciências materiais por se debruçar sobre aquilo que se manifesta no físico e possui suas próprias origens e leis - para tanto, merece um método específico de estudo. Wundt em 1873 ele publicou o livro Fundamentos da Psicologia Física e é considerado o pai da psicologia. Ele criou em 1879 o primeiro laboratório de psicologia. Como é possível perceber, a psicologia experimental ainda dialogava muito com experimentos fisiológicos. Idéias hoje associadas à psicologia como inconsciente, repressão e libido surgiram graças a Freud. Em 1895, no Estudos Sobre a Histeria, Freud procura minimizar o discurso físico em torno da histeria para privilegiar a dimensão psicológica.

O tratamento psicológico, quando pensado em função do inconsciente e traumas infantis, é bastante dispendioso. A preocupação com o tempo e a cura não foi uma prioridade no nascimento da disciplina. A psiquiatria nunca teve um histórico de curas, apenas de controle. A psicanálise também não se propõe a curar. Na tipologia da psicanálise, o sujeito normal é um neurótico. O neurótico é aquele que entende a adere às regras sociais, mesmo que isso lhe cause sofrimento. A repressão da libido é entendida como condição básica da civilização. A única coisa que a psicanálise pode propor aos seus pacientes é o ajustamente social e alívio de alguns sintomas. Com Jung, o paciente terapeutizado se propõe a fazer um mergulho tão profundo no seu inconsciente que atinge o inconsciente da própria humanidade. Reich, outro discipulo eminente de Freud, propunha uma verdadeira revolução sexual: a neurose invidividual, fruto de uma repressão sexual, não poderia encontrar sua plena manifestação numa sociedade puritana e repressora. Por isso, a libertação da indivíduo necessariamente passaria pela libertação da própria sociedade.

Nos Estados Unidos surgiu uma outra maneira de entender a psicologia, muito mais prática e direta. Lá surgiu a psicologia comportamental, também chamada de behaviorismo. O behaviorismo metodológico de Watson (1878-1958) se propunha a abandonar os processos cognitivos e se limitar ao comportamento observável. Skinner (1904-1990) levou o método comportamental a outro patamar, ao propor que através do comportamento observável é possível conhecer e modificar a dimensão psíquica. Para tanto era preciso fazer uma análise comportamental, ter objetivos claros, levar em conta possível condicionamentos e propor modificações ambientais. Isso tornou possível a criação de terapias mais rápidas. Embora criticado pelo seu mecanicismo e por ignorar a questão da liberdade pessoal, o behaviorismo se mostrou muito eficaz em tratamentos como os de fobias, distúrbios de sexualidade, necessidades educativas especiais, entre outros.

O que ninguém poderia prever é até onde a idéia da rapidez e simplificação poderia nos levar. O behaviorismo se livrou do inconsciente e essa nova modalidade de terapia se livrou do condicionamento. Restou apenas o comportamento. Em programas de TV, palestras motivacionais e qualquer evento que dure algumas horas, é possível alguém usar algum objeto como metáfora - papel para simbolizar as dificuldades, pedras transformadas em culpa, espelho e roupa em auto-imagem - e propor com isso uma mudança de vida. Pela popularidade do método, não duvido que isso possa causar uma sensação imediata de alívio. Acho que se as questões de uma pessoa fossem simples como carregar pedras, ela mesma já teria dado conta de resolver o problema. Essa simplificação extremada não possui nenhuma base consistente; ela pode ser resultado da solicitação crescente que a psicologia sofre da sociedade. E certamente contribuirá para a desvalorização da psicologia.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Seu corpo sabe

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É um arquivo que parecerá grande quando você abrir, mas é bem fácil devorar as sete páginas em que o Dr. Vernon Coleman discute vários aspectos da medicina. Destaco alguns pontos:

O fato é que nosso corpo é perfeitamente capaz de cuidar-se sozinho. No entanto, poucas pessoas aproveitam esses mecanismos de auto-cura e a capacidade de auto-proteção. Em vez disso, preferimos colocar nossa saúde e nossa vida nas mãos de “especialistas”, muitas vezes treinados para considerar o corpo e as doenças que o afligem com evidente estreiteza de visão.(....)
Como conseqüência importante desse relacionamento entre médicos e indústria farmacêutica, formas de terapia que não podem ser embaladas, vendidas e transformadas em um produto lucrativo são ignoradas tanto pelas revistas médicas quanto pelos próprios médicos, que obtêm suas informações através dessas revistas.
Por exemplo, embora cada vez mais estudos independentes comprovem que pessoas com hipertensão podem reduzir permanentemente sua pressão arterial aprendendo a relaxar, a maioria dos médicos ainda acredita que medicamentos são a única saída.(....)
Anos atrás, se você fosse ao médico dizendo que se sentia péssimo, na maior fossa, ele provavelmente teria receitado um tônico inócuo, conversado com você durante uns 20 minutos e aconselhado a sair e se divertir um pouco. Hoje, se você vai ao médico queixando-se do mesmo desânimo, ele provavelmente vai diagnosticá-lo como depressivo. Provavelmente, ele vai receitar um dos poderosos medicamentos atualmente disponíveis na praça.
Até recentemente, a depressão era uma doença relativamente rara, mas as coisas mudaram. Hoje, a depressão é uma das moléstias que mais aumenta no mundo. Milhões de pessoas sofrem de depressão. E o boom ocorrido no diagnóstico de depressão coincidiu com o desenvolvimento de anti-depressivos químicos especiais, novos e caros. Temo que muitas vezes a pessoa é diagnosticada como “depressiva” quando simplesmente está angustiada, infeliz ou cansada da vida que leva.(....)
Como a maioria dos médicos receita demais medicamentos diferentes, eles não têm idéia dos efeitos colaterais produzidos por aqueles que estão receitando. Portanto, lembre-se da Primeira Lei da Medicina Moderna de Coleman: “Se você desenvolver novos sintomas enquanto estiver sob tratamento para qualquer problema, provavelmente esses novos sintomas são causados pelo tratamento.” Um entre cada seis pacientes está no hospital porque os médicos o tornaram doente. O motivo é simples. São poucos os médicos e os doentes que conhecem a Primeira Lei da Medicina Moderna de Coleman. Você não deve esquecer nunca.


Leia o artigo completo aqui. Indicação do Alessandro Martins.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Calma, tá tudo bem agora

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Há algumas semanas, eu assisti uma reportagem especial, não sei de qual emissora. Não importa, realmente, em que emissora foi, porque essas reportagens especiais seguem um roteiro muito parecido. Essa era sobre exploração sexual de crianças. Ele mostrava estrangeiros que vinham ao Brasil para dormir com as meninas, falava da pobreza, das drogas, das doenças, da infância abandonada e que algumas eram levadas pelos próprios pais a se prostituirem. Tinha imagens chocantes de meninas em boates, depoimentos dolorosos de crianças que mesmo antes de chegarem aos dezoito anos já tinham visto, vivido e sido exploradas de todas as maneiras. Uma reportagem de conteúdo pesado, que causava angústia ao nos colocar a par de um problema tão grande, que existe em todos os lugares e simplesmente não é visto.

Aí, no fim da reportagem, eles colocaram instituições exemplares que cuidam dessas meninas. Mostravam as pequenas X e Y, que pela primeira vez em muitos anos eram tratadas com dignidade e não viviam mais nas ruas. E assim, depois de todo mal estar, eles colocaram algo positivo para que os telespectadores não fossem dormir mal. Calma, tá tudo bem agora. Mas não está. Se for parar pra pensar, aquelas instituições não resolvem os problemas relativos à prostituição infantil: o número delas é insuficiente, o índice de recuperação é pequeno, os danos causados a essas crianças são muito grandes e quando falamos em perspectivas, são sempre perspectivas muito limitadas, de sair da prostituição para entrar na pobreza e no subemprego. A questão é que não paramos pra pensar, apenas nos sentimos aliviados. As reportagens que mostram a realidade nua e crua têm essa tendência, ou essa regra, de sempre terminarem bem, mostrando um problema e sua solução. Mesmo que seja uma solução muito insuficiente.

A ficção conhece há muito tempo e se utiliza do recurso de escolher bem como encerrar. Nas novelas, nos romances, os anos a fio de injustiça vividos pelos mocinhos são apagados no momento em que tudo acaba bem no final. Há obras que precisam ser totalmente repensadas, porque o final nos abre perspectivas novas para tudo o que havia acontecido antes. Lembro de filmes de terror, que não terminam nunca; eles nos oferecem um final feliz falso e logo depois plantam a dúvida - a mãozinha do assassino saindo da terra - que nada mais é do que um aviso de que haverá uma continuação. Existem as narrativas circulares, em que no fim da história nos vemos no começo, ou num recomeço. Na música, existem intervalos entre notas que dão a idéia de tensão, assim como existem os que dão idéia de finalização; tais intervalos dão colorido às frases. As músicas costumam ter um auge melódico pouco antes de acabar. Na dança, as coisas terminam em pose. Onde quer que se olhe, a maneira de terminar é uma comunicação com o público, que a partir dali deve reagir - com aplausos ou com silêncio.

Se a maneira de terminar indica que experiência o público deve levar, podemos concluir que o as reportagens chocantes nunca querem prolongar o desconforto que elas mesmas causaram. É um choque de mentirinha. O público deve ficar temporarimente abalado, mas que a TV não seja culpada de dores na consciência e insônia de ninguém. Após conhecer uma realidade difícil, que o espectador se tranquilize com a idéia de que alguém - que sem dúvida não é ele - já está providenciando solução para o problema. Se o sentimento de desconforto persistir, ele pode procurar a instituição que apareceu na reportagem e fazer uma doação.

O que aconteceria se as coisas fossem apresentadas sem solução? Se ao invés de mostrar instituições salvadoras, a reportagem terminasse com meninas que se prostituem desde a infância, usam drogas e não tem perspectiva para o futuro? Eu não sei. Quem estivesse vendo aquela reportagem ficaria angustiado, e teria que procurar sozinho uma maneira de digerir o que viu. Não há como prever que efeito teria- poderia ser totalmente inócuo, ou o espectador poderia encontrar uma solução muito mais interessante do que normalmente se propõe. Eu acho que o inesperado, não oferecer soluções fáceis, é uma experiência muito mais adulta e que vale a pena ser testada.