Enfrentei heróicamente quase os dois volumes inteiros de Os Miseráveis, de Victor Hugo. Tive que abandonar exatamente quando a história esquenta e todos se vêem envolvidos com a Revolução Francesa. Foi na tentativa de preencher essa lacuna que decidi ver Os Miseráveis, com Liam Neeson e Geoffrey Rush. Abandonei o filme logo nos primeiros minutos. Eu já esperava que cortassem muitos detalhes para tornar as coisas mais dinâmicas - e quem enfrentou infinitas disgressões do livro, que falavam sobre ruas, freiras e até gírias, sabe que realmente havia muita coisa pra cortar - mas não pensei que o filme deixaria de fora a coisa que mais me chamou atenção: a vontade imperiosa que Jean Valjean de ajudar o próximo. Acredito que para o leitor da época, Jean Valjean pode ter representado o ideal de homem ético, um verdadeiro herói que colocava a justiça e a fraternidade acima de tudo, até mesmo da sua sobrevivência. Como leitora de hoje, todo o sacrifício dele me pareceu exagerado, suicida e até mesmo contra-producente.
É o sacrifício dele em salvar a vida de um homem que o leva a ser reconhecido por Javert, que tenta denunciá-lo mas fica em descrédito porque Jean Valjean nessas alturas já é vice-prefeito. Prendem um homem muito parecido no lugar dele, e o equívoco jamais seria desfeito se ele mesmo não fosse ao tribunal e se denunciasse, reiniciando a caçada da polícia. Nesses dois momentos do livro, ainda é possível pensar que ele estava fazendo escolhas difíceis, que envolviam a vida de outros - deixar alguém morrer, condenar outro a um sofrimento que ele conhecia tão bem. Mas nada disso estava em jogo quando, muitos anos depois, Javert reencontra Jean Valjean ao tentar desvendar o mistério do "mendigo que dá esmolas". Ao invés de usar a reserva de dinheiro para garantir sua própria sobrevivência, Jean Valjean está sempre se expondo a riscos na tentativa de ajudar todos os que encontra pela frente. Além de ser descoberto por Javert, essa vontade de fazer o bem o leva de volta à malvada família que havia explorado Cosette, os Thénardier.
O livro é bastante ambicioso e se propõe a ser um panorama completo do período anterior à Revolução Francesa. Ao contar a história de vários personagens, o principal sentimento que temos é o de decadência. Victor Hugo fala de nobres perderam sua posição na sociedade, de intelectuais sem rumo e, principalmente, de uma massa de pessoas sem função ou dinheiro. Mesmo os personagens mais mesquinhos não fazem mais do que atrasar seu encontro com a miséria. Os Thénardier são o maior exemplo disso. No início do livro eles têm uma pensão e recebem dinheiro para cuidar de Cosette. Anos depois, Jean Valjean encontra Cosette como escrava dos Thénardier, que lucravam com o trabalho da menina e a pensão que recebiam por cuidar dela. Para abrir mão da guarda de Cosette, Thénardier a vende a Jean Valjean. Quando Cosette já é adolescente, apesar de tantos golpes, eles ressurgem no livros como mendigos, aplicando pequenos golpes. O único personagem que parece ter capacidade de fazer dinheiro é justamente Jean Valjean. Ele parece sentir isso, como se tivesse uma dívida social. Para sanar essa dívida, tenta ajudar os outros com dinheiro o tempo todo, o que se mostra inútil e arriscado. É uma pobreza onipotente, que suga e se torna maior à medida em que mais pessoas caem nela.
E nós sabemos que realmente é um buraco sem fundo. Muita coisa aconteceu depois da Revolução Francesa, que foi um sonho que terminou com 18 Brumário. Também aconteceu Marx, que nos disse que enquanto houver exploração do excedente do trabalho de um homem por outro homem, a justiça social não é possível. Parecia que depois disso aconteceria uma revolução proletária e ela não aconteceu. Aconteceu o regime soviético, mas ele caiu e a China virou o país de capitalismo mais selvagem que existe. Aconteceu o colonialismo e o fim do colonialismo economico não significou o fim do colonialismo cultural. Aconteceu quebra de bolsa, guerra por petróleo, globalização, internet. Além e acima de tudo isso, aconteceu que a pobreza se tornou grande demais. A miséria não se resume mais a comer pão - embora em alguns lugares ela ainda seja tão básica quanto isso. A má distribuição de renda vai muito além do que vemos nas ruas; existem pessoas tão ricas que nem ao menos temos acesso à presença física delas. Como nenhum de nós tem o tesouro escondido de Jean Valjean, não perdemos nosso tempo achando que a nossa desgraça pode melhorar a vida dos outros.
Hoje somos assim, tão realistas que não perdemos tempo dando um único passo. Somos céticos, não nos iludimos com partidos políticos e antigas ideologias. Não queremos cometer os mesmos excessos do passado, excessos causados por crenças e verdades absolutas. Preferimos nos posicionar sem sair de casa, sem gastar muito, sem envolvimento, sem riscos. Usamos hastags no twitter e doamos coisas pra gente que a TV nos mostra sofrendo. Quando alguém nos pede dinheiro no ônibus, como saber se é verdade, se a moeda vai ajudar num problema pontual ou apenas manter a mendicância? Não tem como saber. O mundo ficou muito complicado e o buraco negro continua sugando. Cada dia mais, é cada um por si. A consciência da grandeza dos problemas nos deixa paralizados. Entre Jean Valjean e nós aconteceram tantas coisas, que no meio delas algo de muito importante se perdeu.
Olá caminhante,
ResponderExcluircá estou eu, nesta insípida tarde de segunda-feira em Curitiba, quando de chofre me deparo com este enaltecedor post; digo isso por ter terminado na última quinta-feira - depois de meses e meses de estoicismo deliberado - o interminável ´Os Miseráveis´.
Achei sua análise muito bem escrita e abrangente, porém vc suprimiu Marius e Fantine, sendo que ele, ao meu ver, é o alterego de Victor Hugo: o intelectual sensível e justo; e ela, a heroína inabalável que se auto sacrifica pela filha.
Transcrevi abaixo um belo trecho do livro:
"Diminuir o número dos tenebrosos, aumentar o dos luminosos, eis o fim. Eis porque gritamos: ensino! ciência! Ensinar a ler é acender lume; toda a sílaba soletrada lança faíscas.
No entanto, quem diz luz não diz necessariamente alegria. Sofre-se na luz; o excesso queima. A chama é inimiga da asa. Arder sem cessar, devorar, eis onde está o prodígio do gênio.
Mesmo tendo todos os conhecimentos, mesmo amando, sofrereis sempre. O dia nasce lacrimoso. Os luminosos choram, ainda que não seja senão a sorte dos tenebrosos."
Até,
Rodrigo
Olá, Rodrigo!
ResponderExcluirQue bom encontrar mais alguém no mundo que quis enfrentar o livro! É verdade, eu deixei de lado Marius e Fantine. Em Fantine eu pensei - da decadência dela, que perde sua beleza e se prostitui, mas se esforça pra salvar a filha. Lembrei assim que publiquei o post, por ser uma decadência feminina muito específica. Como já estava publicado, deixei faltando mesmo.
De Marius, confesso que foi algo meio deliberado. Como disse no início do post, não consegui terminar o livro - o prazo da biblioteca se esgotou, eu tentei pegar de novo e não achei o livro na estante, etc. Depois de Jean Valjean, é o meu personagem preferido. Mas por não saber ao certo como ele termina - li a respeito, mas eu não VI - fiquei meio receosa de entrar nesse assunto.
Muito obrigada pelo comentário! Gosto tanto do livro e há tanto tempo queria escrever sobre ele, que confesso que estava meio frustrada por ninguém ter se manifestado...
Caminhante, faz muito, muito tempo (talvez 10 anos) que me deparei com Jean Valjean e nunca consegui definir, ao certo, o que me inquietava. Eu o admirava (admiro), mas há algo que me faz duvidar de mim mesma quando escrevo isso. Eu tenho lareza que algo se perdeu, só não estou bem segura se o vácuo é maior no mundo ou em mim. Mas sigo tentando descobrir e, passar por aqui, é um passo nessa direção.
ResponderExcluirBorboletas, já li o livro há anos e desde aquela época tinha vontade de escrever. Já tinha ensaiado várias vezes, mas só agora saiu esse post. É muito difícil definir o que a gente sente por ele.
ResponderExcluirTentei ler Os Miseráveis, mas é um daqueles livros que, infelizmente, estão além do meu esforço. Não sei explicar o por quê. Mas é uma das histórias mais belas, a de Jean Valjean.
ResponderExcluirEsse estudo seu das diferenças temporais da obsolescência do carisma é muitíssimo importante. Acho que coincidimos no tema, quando escrevi meu post sobre o século de Tolstoi. Acho mesmo que o altruísmo vai deixar de ser um luxo moral, praticado por poucos, para ser a mais alta necessidade social. Ou nos ajudamos, ou nos exterminamos. A disparidade social está tão gigantesca, que é a causa de TODOS os males, desde a epidemia do crack, a violência, até as mazelas do sistema educacional.
Só uma curiosidade: Hugo se deu umas férias após a conclusão do livro. Passado algum tempo da publicação, ele envia a seu editor uma carta suscinta, com apenas um ponto de interrogação: "?". Querendo saber como o livro estava sendo recebido. Ao que o editor responde: "!".
Fantástica essa história do Victor Hugo, não conhecia.
ResponderExcluirVocê não conseguiu porque é um livro difícil mesmo. Basta ver que eu e o Rodrigo levamos meses enfrentando o livro. É um livro moralista, que tenta abraçar o mundo numa história só. O início é a parte mais interessante. À medida em que a revolução se aproxima, Victor Hugo começa a viajar tanto que o leitor também se perde. É daqueles livros que a gente lê porque se propõe.
Essa questão, do carisma (de acordo com você...eu não nomeei porque realmente não consigo nomear) é uma preocupação em comum que nós temos. A primeira conclusão (deste texto) que escrevi tinha um ar claro de acusação, das pessoas não fazerem nada pelo que existe por aí. Mas quem sou eu para falar dos outros? Sinto, eu também, uma impotência muito grande.
Ano passado ou retrasado, comecei a ler e não terminei (porque é quase tarefa de uma vida) o primeiro volume d"A crítica da razão indolente", de Boaventura Santos. O nome do livro é a citação de alguém, acho que Leibniz, dizendo que se o futuro chegará de qualquer forma, não há porque empreender um esforço até ele. De acordo com Boaventura, essa é a postura que adotamos (pelo fim de teorias totalizadoras e uma série de outroa fatores) e contra o qual ele se coloca. Para ele, se continuarmos não fazendo nada, nada encontraremos quando chegarmos lá.
Como sou, orgulhosamente, um matuto do interior, muitas vezes fico extasiado com algo que para a maior parte do mundo já não é novidade. Assim, seguindo o tema desse teu post, e mais ainda o da nossa discussão no meu blog _ e Bauman _, não sei se já assistiu ao documentário "Zeitgeist", que fala disso tudo. Aqui disponho uma net de apenas 2 Gb, o que evito de fazer downloads de vídeos (lentíssimo), mas os 10 gigas das regiões metropolitanas vem a calhar se vc o procurar nos sites de busca. Acho que vai gostar. A primeira impressão é de que se trata de teoria da conspiração, mas um pouco de paciência e se percebe muita gente boa por detrás. São seis horas de duração.
ResponderExcluirVocê acha que tem uma conexão ruim? A minha 1 mega. Procurarei numa locadora aqui perto de casa, que por incrivel que pareça pode ter. Foi lá que eu achei Arquitetura da Destruição. Valeu a dica!
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