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quarta-feira, 3 de agosto de 2011

A beleza nobre

A princesinha andava de um lado para outro do terraço com os companheiros, e brincava de esconde-esconde à roda dos vasos de pedra e das velhas estátuas musgosas. Nos dias comuns, só lhe era permitido brincar com crianças da mesma condição, de modo que brincava sempre sozinha, mas o dia dos seus anos era uma excessão, e o rei dera ordens para que ela convidasse todos os amiguinhos que quisesse para virem divertir-se com ela. Tinham uma graça majestosa ao passar aquelas esguias crianças espanholas, os meninos com os chapéus de grandes plumas e curtos mantos ondulantes, as meninas segurando a cauda dos longos vestidos de brocado, e protegendo os olhos do sol com imensos leques de cores negras e prateadas. Mas era a infanta a mais graciosa de todas, e a que se trajava com maior requinte, segundo a moda um tanto pesada da época.
O aniversário da infanta


De Oscar Wilde eu li, na adolescência, O Retrato de Dorian Gray. Lembro de ter gostado muito e não ter me interessado em ler mais nada do autor, porque estava numa fase de querer devorar clássicos. Então fui sem qualquer lembrança de estilo que peguei Os melhores contos de Oscar Wilde. E me senti, invariavelmente, entrando num aniversário de uma infanta, visitando uma vida de corte, vendo as coisas na perspectiva de uma pessoa que tinha tudo: beleza, educação, bons relacionamentos, brilho próprio e genialidade. Wilde às vezes tenta em alguns momentos sair da sua posição e escrever do ponto de vista de pessoas simples, mas as descrições lhe saem vazias. Ele claramente não pertence ao mundo dos que trabalham pesado:

Todas as tardes saía para o mar o jovem Pescador e atirava a rede à água.
Quando o vento soprava de terra, ele não apanhava nada, ou pouca coisa, pois era um vento amargo de asas negras, e ondas eriçadas vinham recebê-lo. Mas quando o vento soprava para a praia, subiam os peixes das profundezas, e nadavam-lhe por entre as malhas das redes, e ele os levava ao mercado e vendia-os.
O Pescador e sua Alma


Não sei que impressão eu teria se fossem outros contos. Nessa seleção que peguei, é como se Oscar Wilde pretendesse colocar no seu trabalho uma pitada de crítica social; ele não é insensível às contradições da sua época. Mas, aos olhos de hoje, essa crítica não consegue mais do que arranhar a superfície. Talvez para sua época nenhuma solução fosse vislumbrada que não fosse uma dedicação total aos pobres, abdicar de todos os seus bens (como pretende O jovem rei). Victor Hugo, nos Miseráveis, propõe um herói assim. Oscar Wilde não é tão radical, e justamente por isso não sabe o que propor. Ninguém soube dizer ao Jovem Rei que ele, mais do que ninguém, estava em posição de tentar ajudar àqueles que sofreram para costurar suas roupas. A história d´O modelo milionário lembra contos religiosos, onde anjos vestem andrajos para ajudar os puros de coração. Por mais que n´O Aniversário da Infanta a nobreza se mostre cruel e O rouxinol e a rosa tenham levado à sério demais dois jovens enamorados, é do lado da elite que Wilde está. O pobre é o feio, o anão, a multidão furiosa. A pureza de caráter e a beleza física estão sempre do lado nobre, mesmo que sua posição de elite esteja ameaçada:

A menos que seja rico, a ninguém adianta ser encantador. O romance é privilégio do abastado, e não ofício do desempregado. O pobre há de ser prático e prosaico. Mais vale ter uma renda permante do que ser fascinante. Tais são as grandes verdades da vida moderna, que Huguie Erskine jamais compreendeu. Podre Huguie! Intelectualmente, cumpre confessá-lo, não tinha grande importância. Nunca disse uma frase brilhante, nem sequer maldosa, em toda existência. Mas era maravilhosamente bem-apessoado, com cabelos anelados e castanhos, o bem-delineado perfil e os olhos cinzentos. Tão popular entre os homens como entre as mulheres, possuía todos os talentos exceto o de saber ganhar dinheiro. Legara-lhe o pai a espada de cavalaria e uma História da Guerra Peninsular em quinze volumes. Huguie colocou a primeira sobre o espelho, a segunda em uma estante, entre o Guia de Ruff e a Bailey´s Magazine, e passou a viver com as duzentas libras anuais que lhe dava uma tia velha. Tentara tudo. Frequentara durante seis meses a Bolsa de Valores; mas que há de fazer uma borboleta entre touros e ursos? Fora comerciante de chá por um pouco mais de tempo, mas logo se cansar de pekoes e souchons. Depois, tentara vender xerez seco. Mas isso também dera em nada: o xerez era seco demais. Afinal de contas, era nada, um rapaz encantador, malsucedido, com um perfil perfeito e nenhuma profissão.
O modelo milionário


Não é à toa que tantos críticos dizem que a obra de Wilde chegou a outro patamar depois de sua prisão e a publicação de De profundis. É o próximo livro que lerei e estou ansiosa para ver o que essa mudança de universo provocou no estilo de um dândi.

2 comentários:

  1. Belíssima parte do De Profundis, Fernanda!!!

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  2. Do Wilde só li uma seleção de seus contos. Também tive essa impressão quanto ao universo fabulesco cristão de narrativas como O Príncipe Feliz e O Rouxinol e a Rosa, de que, apesar da beleza quase violenta dos textos, era algo que não dizia diretamente às experiências do autor. Me falta a leitura de Wilde, mas suponho, pelo pouco que li, que havia por sob sua figura de dândi e boa-vida, a angústia moral de fazer sentido em um outro nível mais elevado. Penso que seja algo parecido ao que tomou conta de Orwell e outros autores do século XX. Talvez Wilde tenha nascido no século errado, e lhe feria a ausência dos grandes temas políticos e espirituais que só seriam externados dali há meio século.

    Mas seu excerto do De profundis me entusiasmou a ir atrás desse livro.

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