Uma curiosidade: peguei esse livro da Biblioteca Pública, com um ex-libris que informa que ele é uma doação da Comunidade Israelita em comemoração aos 120 anos da imigração judaica no Paraná, em 2009. Quando fui ao balcão de empréstimo, a funcionária olhou para a ficha de devolução, soltou um grito e mostrou o livro para os outros, dizendo que foi a primeira vez na vida e que aquilo não se repetiria. Depois fui olhar o que havia de tão extraordinário no fim do meu livro: eu fui a primeira pessoa a emprestá-lo. Espero que isso mude e que muitos outros carimbos surjam após o 30AGO2012 que eu coloquei.
Minha curta experiência com Saul Bellow - As aventuras de Augie March e O legado de Humboldt pela metade - me dizem que é aquele tipo de livro feito para se apaixonar perdidamente. Se você começa a ler e acha tudo muito confuso, que não vai para lugar nenhum e que diabos estão falando, é porque você não vai gostar. Embora não seja escrito em primeira pessoa, vemos as coisas de dentro da pele dos personagens principais de Bellow. Ou ele lhe fala de maneira muito profunda, de maneira que você se sente o personagem, ou ele não lhe fala. Não consegui sentir isso com Humdboldt e amei Augie March. O Sr. Sammler me conquistou desde o seu primeiro parágrafo:
Logo após o alvorecer, ou pelo menos o que poderia ter sido o alvorecer num céu normal, o Sr. Artur Sammler passou uma vista de olhos nos seus livros e papéis espalhados pelo quarto que ocupava na zona oeste da cidade, com um sentimento íntimo de que eram os livros errados, os papéis errados. De certa forma, não tinha realmente muita importância para um homem de seus setenta e tantos anos, dispondo de inúmeras horas de lazer. Era preciso ser um verdadeiro maníaco para querer insistir em ter razão. Ter razão era, afinal, apenas uma mera questão de explicações. O homem intelectual tornara-se uma criatura dada a explicações. Os pais para os filhos, as esposas para os maridos, oradores para os ouvintes, peritos para leigos, colegas para colegas, médicos para pacientes, o homem para a sua própria alma, todos tinham explicações a dar. As raízes, ou as causas disso, a fonte dos acontecimentos, a história, a estrutura, as razões do porquê. Na sua maior parte, porém, penetravam por um ouvido para sair pelo outro. A alma queria mesmo o que queria: tinha o seu próprio conhecimento; sentada, infeliz, na superestrutura da sua explicação, feito um pássaro que, coitado, não sabia de que lado iria voar.p.5
O livro fala de um período curto e agitado na vida do Sr. Sammler, um judeu polonês que sobreviveu ao holocausto. Embora não se apresente dessa forma e nem viva em função do passado, ele é um homem marcado. Fisicamente, pela perda de um dos olhos. Num sentido muito profundo, Sammler é um homem sem lugar, o representante de um mundo que foi destruído. Seu vocabulário, seu físico, sua maneira de se portar ("Sammler não se permitiu nenhum comentário. Afinal, seu coração não era tão difícil de ser tocado. Além disso, fora treinado na antiga polidez. Quase como, outrora, a mulher fora educada para a castidade" p. 168) refletem o Velho Mundo que existia antes da guerra. No livro que escreveria (ou escreverá) sobre H. G. Wells, há uma conexão com esse mundo, mas ele mesmo não tem ilusões quanto a isso. Os outros parecem dar mais importância do que ele mesmo. Bellow mistura o passado e o presente de Sammler com uma incrível
maestria, fazendo com que as lembranças de Sammler aflorem e revelem pouco a pouco o que ele viveu, mostrando ao leitor quem ele é e suas motivações. Ao contrário do que os que o cercam, Sammler conheceu a profundidade e não precisa buscar fortes emoções através do sexo, dinheiro ou atitudes insensatas. A geração do pós-guerra, perto dele, parece insana e perdida. O intervalo da vida de Sammler descrito no livro - um incidente com um batedor de carteiras, uma palestra a uma faculdade, o sobrinho e benfeitor hospitalizado e os problemas com sua filha e o livro do Dr. Lal - dá ao leitor uma sensação de desencaixe, de que Sammler não deveria ter que passar por essas coisas. Ele é o velho diante do novo, o introvertido num mundo de extroversão, o sofrido diante do fresco e pronto para viver, o filosófico diante das necessidades práticas. Ele é cada um de nós, sem solução, despreparados e com uma visão limitada para tudo o que a vida nos exige.
Que último parágrafo lindo e preciso, Fernanda! Esse livro tem uma importância singular para a minha vida. Quanto aprendi e me consolei com ele. Essa frase citada, à medida que a lia, percebi que a sabia quase de cór. Tem passagens e passagens tocantes de uma maneira intensa nesse romance. O sr. Sammler indo à biblioteca para ler a mesma passagem do monge medieval, fielmente; o sr. Sammler sendo duramente retaliado em sua palestra à universidade, por uma juventude que "fez da merda um sacramento"; o livro do dr. Lal roubado por sua filha, e a quase sedução entre o velho autor e a filha tresloucada do sr. Sammler; as lembranças de quando o sr. Sammler sobreviveu ao massacre nazista e matou um alemão. Um livro soberbo e inesquecível.
ResponderExcluirMuito obrigada, Charlles, era o comentário que eu estava esperando. Li esse livro excluvisamente porque ele entrou na tua lista de livros inesquecíveis e devo dizer que ele me tocou muito também.
ExcluirQue baita autor é esse que consegue criar uma personagem jovem, extrovertida e sortuda como Augie, e um velho introvertido, filosófico e cansado como Sammler e dar aos dois tanta vida, e criar no leitor tanta empatia. Me deu até certa culpa de ter largado o Humdbold. Quase copiei o Sr. Sammler todo, de tantas passagens marcantes. A crítica que faço à minha crítica é por não ter conseguido transmitir o quanto esse livro é lindo, o quanto eu gostei de lê-lo.