Programas evangélicos, desses que passam na TV, têm um pouco de tudo. Há um momento específico de doutrinação, mas vai muito além disso. Fiéis mandam cartas perguntando ao pastor o que fazer, coisas comuns como casar ou esperar mais um pouco. Em ritmos possíveis, muitas vezes inspiradas no último sucesso pop, as músicas se esmeram em tentar colocar Jesus em todos os refrões. Nos programas da igreja universal cada dia tem um ritual diferente - camiseta amarrada, as sete águas correntes, a flor de não-sei-o-quê. Mas o momento mais interessante, sem dúvida, é quando eles dão voz aos que frequentam a igreja, para eles compartilharem os seus milagres pessoais: ações na justiça que se resolveram rapidamente, livrar-se com drogas, casais que não se entendem, problemas crônicos de saúde, etc.
Frequentei muitos cultos por curiosidade, mas nem ao menos sou batizada. Apesar disso, eu sou aquela que vai nos posts do ateu
Milton Ribeiro "defender" a religião. Não que eu a considere desejável, e sim porque não concordo com visões simplistas sobre o assunto. Uma delas é crer se tornarmos a ciência acessível, as pessoas se
libertarão da religião.
(roubei da
Tina Lo)
Eu diria que esse é um pensamento datado. Mais especificamente, do século XIX. No
já citado Ramo de Ouro (The golden bough: a study of magic and religion), publicado em 1890,
Frazer propunha que a humanidade avança por três estágios: do mágico para o religioso e do religioso pro científico. A
magia era visto como algo mais desorganizado, que através de leis especifícas - como da contiguidade e da similaridade - tenta influenciar o mundo extermo. A
religião teria a vantagem de ser um sistema cosmológico mais complexo, que ao invés de entender a natureza através leis imaginadas, apela para a existência de espíritos e divindades. E o
científico é o estágio da excelência, das coisas como são, de entender a natureza tal como ela é e buscar influenciá-la da maneira realmente eficiente. Em resumo, a ciência é o ocidental e civilizado. Magia e religião são coisas de atrasados e primitivos, de pessoas de raciocínio menos desenvolvido - estejam eles vivendo longe ou perto de nós.
Existe uma referência anterior a Frazer, mas não menos importante: Comte. Augusto Comte (1798-1857), avô da sociologia, também postula três estados no desenvolvimento do sistema social: o estado teológico, estado metafísico e estado positivista. No estado teológico, o o homem observa a natureza e, impossibilitado de entendê-la de outra maneira, produz explicações sobrenaturais, dando origem às teologias; no estado metafísico, a procura de soluções absolutas para os problemas dos homens o leva e especulações abstratas e daí surge a filosofia; por fim, o estado final é o positivista, onde o homem subordina seu julgamento à razão e chega à ciência positiva. A ciência positiva uniria todas as ciências, conheceria as leis que regem as sociedades e permitiria a produção do bem. Novamente a ciência surge como um estágio superior de pensamento. É interessante pensar que Comte distingue teologia de religião, e propunha a criação da Igreja Positivista; nela, são louvados os grandes filósofos, cientistas e artistas da humanidade. Isso mostra que qualquer coisa pode ser colocada num altar, inclusive a ciência.
Nem preciso dizer que todas as previsões sobre o fim das religiões falharam. Ciência e religião coexistem, e não foi por falta de avanço científico. Na minha opinião, quem ofereceu uma explicação simples e profunda a esse respeito foi Weber, o mesmo autor de
A ética protestante e o espírito do capitalismo (1904). No
Ciência e política: duas vocações (1917-1919) ele nos diz, citando Tolstói: "a ciência não tem sentido porque não responde à nossa pergunta, a única pergunta importante para nós: o que devemos fazer e como devemos viver?" Retorno aos programas evangélicos, às cartas, às músicas, aos rituais, às dúvidas idiossincráticas dos fiéis, às decisões a serem tomadas todos os dias. Há uma dor que precisa ser carregada individualmente e a ciência não lida com ela. Por mais mentiroso ou fantasioso que soe aos ouvidos descrentes, a religião têm algo a propor sobre a vida de cada um. A ciência procura descrever o mundo e não encontrar um significado nele.
É preciso entender o que é ser um fiel. Há um desejo anterior aos templos, por isso não basta destruí-los. Esse desejo vai além da simples crença de que existe algo além do que vemos, porque muitos que não frequentam nenhuma denominação também pensam assim. Crer não torna alguém religioso, no sentido de ser um fiel. O fiel vai à sua igreja; fazer parte de uma igreja é viver uma cultura. É o encontro marcado, a vivência em comum, pessoas que olham o mundo a partir de um mesmo ponto e a partir dele algo é gerado. Igrejas oferecem uma ampla rede de apoio, tanto para os seus fiéis como para o resto da sociedade. Basta pensar no conceito de caridade - quase todos os trabalhos voluntários e altruístas ainda se alimentam dele. Eu vejo falarem em tirar a religião das pessoas, como quem retira um objeto. Não se propõe nada, não a substitui por nada. Enquanto aqueles que gostariam de ver o fim das religiões a entenderem apenas como um conjunto de crenças equivocadas, sempre estarão muito longe de solucionar esse problema.