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quarta-feira, 30 de maio de 2012

O caçador de pipas

É uma pena pensar nas coisas entusiasmadas que achei que diria sobre O caçador de pipas e que não direi mais.

O livro começa excelente. Ele me lembrou outro best-seller, mais ou menos da mesma época, A menina que roubava livros: ambos falam de crianças, de guerra e tem uma narrativa dinâmica. O recurso de antecipar no fim dos capítulos uma informação incompleta do que ocorre mais tarde, usado nos dois livros, causa no leitor ansiedade pelo que virá nos capítulos seguintes. As primeiras cinquenta páginas são devoradas sem sentir. Por se passar no Afeganistão, o livro ainda teria um atrativo a mais ao fazer o leitor se transportar para uma cultura diferente. Somos logo apresentados aos personagens centrais da história:

Baba contratou a mesma ama-de-leite que tinha me amamentado para cuidar de Hassan. Ali nos disse que ela era uma hazara de olhos azuis, natural de Bamiyan, a cidade das estátuas dos Budas gigantes.
- Que voz doce e melodiosa ela tinha... - era o que costumava nos dizer.
Hassan e eu sempre perguntávamos o que ela cantava, embora já estivéssemos cansados de saber: ele nos contou essa história milhares de vezes. Só queríamos ouvir Ali cantando.
Ele pigarreava e começava:

De pé, no topo da mais alta das montanhas,
Chamei por Ali, o Leão dos Deuses
Ó Ali, Leão dos Deuses, Rei dos Homens,
Traze alegria para os nossos corações
Que tanto sofrem.

Depois repetia que as pessoas que mamavam no mesmo peito eram como irmãs, ligadas por uma espécie de parentesco que nem mesmo o tempo poderia desfazer.
Hassan e eu mamamos no mesmo peio. Demos nossos primeiros passos na mesma grama do mesmo quintal. E, sob o mesmo teto, dissemos nossas primeiras palavras.
A minha foi baba.
A dele foi Amir. O meu nome.
Olhando para trás, agora, fico pensando que os alicerces do que aconteceu no inverno de 1975 - e tudo o que veio depois - já estavam contidos nessas primeiras palavras.
p.18-19

Ao contrário da tendência de colocar personagens orfãos, humildes e bons - penso na Menina que roubava livros, em Harry Potter, Luke Skywalker e outros -  Amir é um menino bem nascido e egoísta. Nele vemos que não é preciso colocar um protagonista na favela para discutir os sentimentos de falta de amor e as dúvidas sobre si mesmo - Amir tem tudo e sente que tudo lhe falta. Hassan, por outro lado, é todo devoção e pureza. Sobre como é e o que pensa alguém tão bom, nunca saberemos. São com os sentimentos de Amir que o leitor se identifica, que sente a superioridade moral do seu amigo e o maltrata. Suas atitudes, além de tudo, são justificadas pela diferença socio-racial entre os dois. A necessidade de se provar e obter o amor do pai, coloca Amir frente a escolhas e omissões que levantam uma questão fundamental: até que ponto é justificável buscar o próprio conforto? Para obter o que quer e não ter que lidar com suas próprias falhas, Amir opta por sacrificar Hassan. Amir transgride vários limites, e deixa o leitor na dúvida sobre o que ele mesmo faria.

Essas questões existenciais poderiam encaminhar o livro a muitos lugares, onde quem sabe agradaria críticos e não seria um sucesso mundial de vendas. Para mim, é como se eu tivesse ido ao cinema ver um filme europeu, e depois de alguns minutos ele se revelasse um blockbuster americano. Não, a mudança de tom do livro não foi logo que Amir e seu pai saem do Afeganistão, mas foi aí que comecei a sentir os furos. O protagonista de repente está nos Estados Unidos, e senti falta da descrição do período imediatamente anterior, que sem dúvida teria envolvido mais fugas, subornos, dificuldades e esperas. Mais tarde, quando seu pai adoece, achei incoerente que alguém sem plano médico, com pouco dinheiro e em outro país, tenha arranjado médicos e tratamentos com facilidade. Na hora entendi que o autor quis fazer algo mais enxuto - hoje já acho falta de vivência. Já a espera do final do livro ele achou importante colocar, sendo que pro leitor o fim já estava muito claro.

O problema é quando começa a oportunidade de redenção de Amir (sinalizada logo no primeiro capítulo). Nesse instante, a história se torna uma aventura, que sabemos antecipadamente que terá um final feliz, apenas não sabemos exatamente como. Do Afeganistão destruído só temos a mensagem de que os talibãs são maus. Todos os dados lançados no início do livro se encaixam com perfeição, todos os nós são amarrados, cada um recebe na mesma proporção do que havia feito. É legal, é bacana, e gostamos dos personagens a ponto de torcer por eles. O problema é que nesse ponto o livro responde de maneira simplista as perguntas tão bem lançadas no começo. Eu esperava mais, muito mais.

Um comentário:

  1. Maravilha de análise. Senti exatamente o mesmo com o livro, que começa tão bem e termina tão mal, tão cheio de clichês desnecessários.

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