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quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Carne fresca



Elias, no final do século XX, já previa que tenderíamos a nos tornar cada dia mais vegetarianos. Ele não previa com isso os argumentos de preocupação com o meio ambiente ou o discurso de amor aos animais. Se levarmos em conta o que sua teoria, tais explicações são racionalizações, explicações posteriores de um processo muito profundo que tem sofrido nossa mentalidade ao longo dos séculos - a alteração dos padrões de boas maneiras e da noção de nojo.

As boas maneiras são contrárias ao contato. Ser civilizado é sinônimo de ser mais controlado e distante. Isso se reflete na maneira como lidamos com as pessoas, com momentos específicos para tocar, sempre em partes do corpo pré-determinadas e da maneira mais desapaixonada possível. O objetivo é que o toque não pareça um toque. Basta pensar no incômodo que causa quem leva os beijinhos de cumprimento à sério, e beija de verdade a ponto de deixar o rosto do outro marcado com saliva. A vontade imediata é limpar o rosto, gesto que contemos também em nome da educação. O contato com o que há de mais corporal é considerado vergonhoso. Não queremos e não podemos entrar em contato com fluidos, excrementos e cheiros de pessoas com quem não temos intimidade. Mesmo com aquelas que temos intimidade, esperamos que elas não nos forcem a ter contato e ver tudo. Temos para com algumas funções corporais uma mistura de nojo, pudor e vergonha. O espaço onde cada um elimina de si essas características é o banheiro, o mais privativo dos lugares.

Na comida também evitamos o contato. Cada prato é o domínio intransferível da comida de cada um, regra que só pode ser quebrada entre os que são muito íntimos. Os talheres individuais servem de mediadores entre a comida e a boca, e os talheres de comida servem de mediadores entre a comida da mesa e do prato. Mastigamos silenciosamente e de boca fechada para que os outros não participem involuntariamente do nosso gesto de comer. A comida que comemos à mesa nada tem a ver com a que foi colhida ou abatida. Ela já chega ao consumidor pré-lavada, cortada em cubos, embalada, em bandejas. A nossa complexa vida social gerou uma divisão de trabalho tão intensa que muitos de nós jamais verão pessoalmente um animal de corte, muito menos o seu abate. Não gostamos de vincular morte à comida nem no que dizemos a mesa, quanto mais ao que comemos. Escondemos dos nossos olhos todo o processo pela qual a carne passa, e isso faz com que ela se desvincule do sangue e morte que lhe é inerente.

Sabemos que certos alimentos têm origem animal, mas é quase algo teórico. Não vemos e não queremos saber. Queremos que certas coisas permaneçam abstratas, porque não conseguimos mais lidar com os processos que transformam um porco numa linguiça. Que sejam feitos por outras pessoas, longe de nossos olhos e consciências. Por isso muitos optam pelo caminho do vegetarianismo.

6 comentários:

  1. Anônimo11:32 AM

    Ótima reflexão. É um tipo de hipocrisia alimentar (da qual também padeço, hehehe). (Reginacelia)

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  2. Todos nós, Regina. Medo (e nojo) de quem não participa.

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  3. Essa é daquelas coisas que eu nunca entendi. O fulano come carne de boi a vida toda aí assiste "A Carne é Fraca" e vira Vegan... De onde ele pensava que vinham os bifes? De uma árvore ?

    Eu sinto que ocorre o mesmo com a questão do consumo e indústria, as pessoas culpam a indústria pela poluição e nem fazem uma reflexão de que é a demanda delas que faz a máquina girar.

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  4. Ótima reflexão! Teria muito para dizer sobre isso, mas olha a ironia da coisa: estou com o corpo coberto de fragmentos orgânicos e necessito urgente de um banho. Voltei do trabalho agora, e só um bom banho caseiro resolve a higiene de tudo que veio comigo da mecanização do abate bovino.

    Pensar demais ou manter a restrição do pensamento sobre determinados assuntos?

    Até o ritmo de seu texto me deixou nostálgico da leitura da Dialética do Esclarecimento, que trata de maneira única esse assunto.

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  5. Caminhante, estou aqui às 6:14, preparando pra abrir o portão da garagem e sair com o carro debaixo de chuva, para ir ao trabalho. Li seu post no outro blog, e não poderia deixar de dizer o quanto me emocionei. Não raras as vezes você consegue escrever de uma maneira tão excepcional e sincera, que sei que esse seu texto vai ficar me ocupando a mente por todo o dia.

    Abraço.

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