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terça-feira, 18 de outubro de 2011

Morte e cegueira

Não sou uma grande leitora de Saramago. Tentei várias vezes ler Memorial do Convento, até que me convenci de que o livro não me conquistaria. No Evangelho Segundo Jesus Cristo não cheguei até o fim. Não é que o livro não seja interessante, o problema é o tema. Li para saber porquê de tanto escândalo sobre o seu conteúdo. À medida que a história - verossímil e bem construída - avançava, me dei conta de que a figura de Jesus me interessa tão pouco que o livro não me valia só pela polêmica. O que li com profundidade porque citei na minha dissertação foi Ensaio sobre a cegueira. E agora, As intermitências da morte.

Esses dois livros começam com um argumento em comum, com um questionamento simples levado às últimas consequencias: e se de repente ficássemos todos cegos? E se de repente as pessoas parassem de morrer? E é assim que os livros começam, logo no primeiro parágrafo de Intermitências e no segundo de Ensaio:

No dia seguinte ninguém morreu. O facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos justificado, basta que nos lembremos de que não havia notícia nem nos quarenta volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de alguma vez ocorrido fenómeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e nocturnas, matutinas e vespertinas, sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada. Nem sequer um daqueles acidentes de automóvel tão frequente em ocasiões festivas, quando a alegre irresponsabilidade e o excesso de álcool se desafiam mutuamente nas estradas para decidir sobre quem vai conseguir chegar à morte em primeiro lugar. A passagem do ano não tinha deixado atrás de si o habitual e calamitoso regueiro de óbitos, como se a velha átropos da dentuça arreganhada tivesse resolvido embainhar a tesoura por um dia.

***
O sinal verde acendeu-se enfim, bruscamente os carros arrancaram, mas logo se notou que não tinham arrancado todos por igual. O primeiro da fila do meio está parado, deve haver ali um problema mecanico qualquer, o acelerador solto, a alavanca da caixa de velocidades que se encravou, ou uma avaria do sistema hidráulico, blocagem dos travões, falha do circuito eléctrico, se é que não se lhe acabou simplesmente a gasolina, não seria a primeira vez que se dava o caso. O novo ajuntamento de peões que está a formar-se nos passeios vê o condutor do automóvel imobilizado a esbracejar por trás do pára-brisas, enquanto os carros atrás dele buzinam frenéticos. Alguns condutores já saltaram para a rua, dispostos a empurrar o automóvel empanado para onde não fique a estorvar o transito, batem furiosamente nos vidros fechados, o homem que está lá dentro vira a cabeça para eles, a um lado, a outro, vê-se que grita qualquer coisa, pelos movimentos da boca percebe-se que repete uma palavra, uma não, duas, assim é realmente, consoante se vai ficar a saber quando alguém, enfim, conseguir abrir uma porta, Estou cego.

Ao contrário da cegueira, que é encarada como um mal assim que surge, a morte revela sua importância à medida que se faz cada vez mais ausente. Nos dois fenômenos, a mesma falta de explicação. E mesmo se levantadas algumas explicações - vírus, greve, castigo? - elas não esclarecem nada, porque diante de calamidades as explicações pouco importam. A visão é o sentido que nos faz perceber as coisas à distância, a capturar a informação que está distante; de maneira semelhante, o Ensaio sobre a cegueira fala pouco de um quadro amplo, que é muito mais imaginado. Ele conta como a cegueira atinge uns poucos personagens, que são trancafiados e têm suas vidas transformadas; o conhecimento deles apenas nos deixa adivinhar o que a epidemia está fazendo aos outros. No caso da morte, ela é um problema coletivo, e o livro narra o que se passa em esferas governamentais. A ausência da morte interfere em questões de segurança nacional, na autoridade, na economia e no bom funcionamento das instituições.

Nos dois casos, a organização social entra em colapso. É preciso, antes de tudo, ser pragmático; o homem em crise é um outro homem. A necessidade de sobreviver ao extraordinário revela o lado feio das relações humanas. Surgem então novas regras, novas forças, novas organizações. Os que já eram cegos passam a ter vantagem sobre aqueles que acabaram de perder a visão, e usam desse poder para obter regalias e controle sobre as mulheres (para muitos, o momento mais pesado do livro). O governo do país que não morre se vê amordaçado por anônimos se organizam no controle da morte, que se torna uma mercadoria à medida que não pode ser obtida naturalmente. Nos dois livros, Saramago parece nos dizer que o que somos é frágil e contingente; qualquer alteração no que estamos acostumados pode destruir séculos de civilização. E o que está por detrás dessa civilização é egoísta e violento.

Um comentário:

  1. Anônimo5:18 PM

    Li apenas "Memorial do Convento" e mesmo tendo dificuldades em prosseguir a leitura não posso julgar o escritor por uma obra apenas. Com este post ficou ainda maior a vontade de ler "Ensaio sobre a cegueira" e agora também "As Intermitências da Morte".

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