Há algumas semanas, eu assisti uma reportagem especial, não sei de qual emissora. Não importa, realmente, em que emissora foi, porque essas reportagens especiais seguem um roteiro muito parecido. Essa era sobre exploração sexual de crianças. Ele mostrava estrangeiros que vinham ao Brasil para dormir com as meninas, falava da pobreza, das drogas, das doenças, da infância abandonada e que algumas eram levadas pelos próprios pais a se prostituirem. Tinha imagens chocantes de meninas em boates, depoimentos dolorosos de crianças que mesmo antes de chegarem aos dezoito anos já tinham visto, vivido e sido exploradas de todas as maneiras. Uma reportagem de conteúdo pesado, que causava angústia ao nos colocar a par de um problema tão grande, que existe em todos os lugares e simplesmente não é visto.
Aí, no fim da reportagem, eles colocaram instituições exemplares que cuidam dessas meninas. Mostravam as pequenas X e Y, que pela primeira vez em muitos anos eram tratadas com dignidade e não viviam mais nas ruas. E assim, depois de todo mal estar, eles colocaram algo positivo para que os telespectadores não fossem dormir mal. Calma, tá tudo bem agora. Mas não está. Se for parar pra pensar, aquelas instituições não resolvem os problemas relativos à prostituição infantil: o número delas é insuficiente, o índice de recuperação é pequeno, os danos causados a essas crianças são muito grandes e quando falamos em perspectivas, são sempre perspectivas muito limitadas, de sair da prostituição para entrar na pobreza e no subemprego. A questão é que não paramos pra pensar, apenas nos sentimos aliviados. As reportagens que mostram a realidade nua e crua têm essa tendência, ou essa regra, de sempre terminarem bem, mostrando um problema e sua solução. Mesmo que seja uma solução muito insuficiente.
A ficção conhece há muito tempo e se utiliza do recurso de escolher bem como encerrar. Nas novelas, nos romances, os anos a fio de injustiça vividos pelos mocinhos são apagados no momento em que tudo acaba bem no final. Há obras que precisam ser totalmente repensadas, porque o final nos abre perspectivas novas para tudo o que havia acontecido antes. Lembro de filmes de terror, que não terminam nunca; eles nos oferecem um final feliz falso e logo depois plantam a dúvida - a mãozinha do assassino saindo da terra - que nada mais é do que um aviso de que haverá uma continuação. Existem as narrativas circulares, em que no fim da história nos vemos no começo, ou num recomeço. Na música, existem intervalos entre notas que dão a idéia de tensão, assim como existem os que dão idéia de finalização; tais intervalos dão colorido às frases. As músicas costumam ter um auge melódico pouco antes de acabar. Na dança, as coisas terminam em pose. Onde quer que se olhe, a maneira de terminar é uma comunicação com o público, que a partir dali deve reagir - com aplausos ou com silêncio.
Se a maneira de terminar indica que experiência o público deve levar, podemos concluir que o as reportagens chocantes nunca querem prolongar o desconforto que elas mesmas causaram. É um choque de mentirinha. O público deve ficar temporarimente abalado, mas que a TV não seja culpada de dores na consciência e insônia de ninguém. Após conhecer uma realidade difícil, que o espectador se tranquilize com a idéia de que alguém - que sem dúvida não é ele - já está providenciando solução para o problema. Se o sentimento de desconforto persistir, ele pode procurar a instituição que apareceu na reportagem e fazer uma doação.
O que aconteceria se as coisas fossem apresentadas sem solução? Se ao invés de mostrar instituições salvadoras, a reportagem terminasse com meninas que se prostituem desde a infância, usam drogas e não tem perspectiva para o futuro? Eu não sei. Quem estivesse vendo aquela reportagem ficaria angustiado, e teria que procurar sozinho uma maneira de digerir o que viu. Não há como prever que efeito teria- poderia ser totalmente inócuo, ou o espectador poderia encontrar uma solução muito mais interessante do que normalmente se propõe. Eu acho que o inesperado, não oferecer soluções fáceis, é uma experiência muito mais adulta e que vale a pena ser testada.
Eu acho que talvez mais pessoas se revoltassem e fizessem alguma coisa ou talvez menos pessoas assistissem ao noticiário para dormir bem e tranquilas.
ResponderExcluirDe fato, as reportagens para televisão são assim mesmo, moldadas num formato fechado que o repórter não tem como alterar. É uma receita de bolo, pura e simples. Frustrante, eu diria.
ResponderExcluirEsqueci de mencionar que, além de ser uma receita de bolo, depende do calo de quem vai apertar e de qual forma. É tudo um jogo de interesses.
ResponderExcluirExcelente texto, Fernanda. Você tocou em dois temas que nos assombram. Por um lado, a exploração sexual infantil, um carma desse país que se alimenta de um turismo predador, mas também de uma cultura que reproduz esse mercado. Por outro, essa mídia que organiza nossas reações e indignações. Isso não ocorre apenas nas reportagens especiais, todos os tele jornais usam uma estrutura semelhante. Banho de sangue no início (para causar comoção), notícias de política e economia dadas com tédio no meio, futebol e "Brasil bonito" no fim. Saímos dali prontinhos para nos preocuparmos com a novela. As superficialidades ficam escondidas nesse esquema não gerador de perguntas nem de debates nem de desacomodação. É algo como "reclame sim, mas não saia do seu sofá".
ResponderExcluirNA MOSCA!
ResponderExcluirAbandonar as soluções tranquilizadoras e abraçar o indeterminado não é terrível apenas para o telespectador médio. Acho que é para todo mundo. Mas concordo que é um exercício necessário de realismo. Duro e cotidiano.
Excelente texto!
ResponderExcluirDisse tudo. E o Horg aí em cima também disse tudo o que eu estava pensando... é bem assim o formato dos telejornais.
Amigos, não tenho nem o que complementar sobre o que vocês disseram. Obrigada pelos comentários.
ResponderExcluirCaminhante,
ResponderExcluiraos cegos...
SÉTIMO
by Ramiro Conceição
Não cantarei às sete
fontes, às sete cores,
nem sequer aos sete anéis.
Nada direi dos sete
amores ou dos sete
selos do louco João
ou dos sete pecados
cometidos, num só dia,
por Sete, filho de Adão.
Do sábado? Nem falar,
após sete cervejas!
Não vou narrar os sete
tiros na encruzilhada:
seis mortos e 1 em coma.
A coisa aqui tá branca,
não tá pra brincadeira,
tá pra bicho de sete
cabeças muito doido.
Não contarei dos sete
tombos do demônio, nas
sete esferas celestes,
até o abismo, o sétimo,
esse inferno terrestre
onde se quebra os dentes
e não se escapa nem com
botas de sete léguas,
fé ou versos de sete pés.
DESFRUTA
by Ramiro Conceição
É, eu tive sorte…
Por não perder o norte
mesmo sem embarcação.
Sim, eu tive sorte…
Por inventar jogos, artifícios,
ofícios – ao pó sedimentado
no corredor, entre a sala-de-estar
e o quarto do insone computador.
É, eu tive sorte…,
pois, a tempo, aprendi
que a vida é uma fruta
que a morte… desfruta.