Eu não saberia o que responder se me perguntasse se sou patriota. Em certos momentos me parece que eu sou, porque acho irritante a mania de algumas pessoas em achar que basta ser de fora para ser bom. Que vale mil vezes lavar pratos em Paris do que ter uma vida tranquila no Brasil, que sair daqui a todo custo é sempre melhor do que ficar. Em outras ocasiões, me parece que não sou, porque sinto vergonha de algumas manifestações culturais legitimamente brasileiras, como a imagem da brasileira fogosa, sambista e semi-nua. Acho que não apenas somos um povo ignorante como nos orgulhamos disso. Vejo a questão de ser brasileira com aceitação, e com um afeto inevitável. O mesmo sentimento que se tem por uma tia avó caipira ou por um primo bêbado - faz todo mundo passar vergonha, mas é parente, fazer o quê?
Quando a gente conhece um pouco de outras culturas, acaba tendo consciência do quanto ainda teríamos o que melhorar. Só quando comecei a dança que eu entendi o quanto é importante apoiar financeiramente atletas, que aqui tudo é feito na base do idealismo e da boa vontade das pessoas. Já os Estados Unidos procuram desde cedo seus talentos, seja nos esportes ou no QI, e oferecem todo apoio. Todos ganham com isso - a pessoa recebe apoio para seguir sua vocação, o país ganha os melhores atletas, as melhores cabeças. A Frau Glaeser, graças a um post meu, falou do amor dos alemães pelo conhecimento, do debate livre e sem preconceito de idéias, de uma clareza no falar que deixou todo mundo com vontade de ir pra Alemanha. A Amanda revela continuamente no seu blog um pouco do modo de pensar dos franceses. Somente lá eu fiquei sabendo que eles não têm o menor orgulho da sua primeira dama ex-modelo, e prefeririam mil vezes uma intelectual como a nossa falecida Ruth Cardoso. São pequenas diferenças que demonstram quem somos, sobre o que atribuímos valor.
Ao mesmo tempo, senti na pele que amar outra cultura nunca nos tornará parte delas. Por parte de mãe, minha família é descendente de chineses. Minha avó era filha e mais tarde se tornou esposa de um chinês. Para aumentar os laços, meu avô era correspondente de um jornal na China e trabalhava com produtos chineses. Então, faz parte da lembrança de infância da minha mãe e tias o som das óperas chinesas ecoando pela sala, um som que parece com "gatos sendo torturados". Elas cresceram em meio a ideogramas em livros que são lidos de cima pra baixo e da direita para a esquerda, porcelanas, madeiras e marfins cuidadosamente entalhados, comida chinesa de verdade (e não esses fast food gordurosos). Eu não conheci meu avô e peguei apenas a herança da herança. Cada vez que vejo uma mulher oriental - cabelo liso e preto, membros curtos, jeito tímido -, mesmo de costas, ela me remete à minha mãe. Cresci ouvindo histórias sobre meu avô e toda a riqueza que a família tinha nessa época. Aprendi a amar o sobrenome chinês que eu não herdei (nenhuma das filhas passou o nome adiante) e ficar feliz cada vez que alguém adivinha que tenho sangue oriental, o que raramente acontece.
Mas a minha avó, assim como a sua mãe antes dela, fez algo culturalmente imperdoável: ela proibiu meu avô de falar chinês quando ela estava presente. Por esse motivo, nenhum membro da minha família sabe chinês. Os ideogramas para nós são familiares apenas como figuras - mas isso nunca impediu minha família de se ver como chinesa. Foi isso que me fez um dia procurar um curso de chinês. O professor de chinês era nativo e pouca coisa mais velho do que eu. Na turma, um comerciante que fazia negócios com a recém-capitalista China; uma senhora que viajaria para a China em breve; uma universitária que já tinha feito curso de outras sete línguas; uma sul coreoana e por aí vai. Me apresentei ao meu professor como descendente de chinês. Eu olhava para ele e via traços parecidos com de um primo e achei que ele veria em mim alguma familiaridade também. De alguma forma, eu achava que ele me reconheceria como uma igual. Mas ele não viu nada. Para ele, eu sempre fui mais uma de suas alunas brasileiras. E não poderia ser diferente -não sei chinês, nunca pus os pés na China, só estive cercada de objetos e histórias. Apenas nesse momento eu me dei conta de tudo isso.
Eu sou brasileira. Herdei algumas coisas da minha ancestralidade chinesa, como outras pessoas herdaram dos inúmeros outros estrangeiros que vieram para cá. Algumas famílias fazem um esforço consciente para manter sua pureza cultural estrangeira; a minha não o fez, e mesmo se o fizesse nunca é como se morassem fora do país. Se pudesse escolher outra nacionalidade, ser brasileira provavelmente não estaria na lista. Gostaria de fazer parte de culturas mais antigas, que valorizam o estudo, que apoiam o comportamento ordeiro e disciplinado - aqui tentemos da julgar como sem valor (o "trouxa") a tentativa de fazer as coisas direito. Mas pensar assim é um exercício que não leva a nada. Nada do que eu faça irá mudar o fato de que nasci aqui, que sofro influências definitivas e até inconscientes pelo fato de viver aqui. É o meu background. O que posso fazer é tentar olhar criticamente para a bagagem que carrego e fazer o melhor possível da minha brasilidade.
Neste país somos todos descendentes de alguma coisa. Minha árvore genealógica é uma verdadeira reunião da Liga das Nações. E não tenho afinidade alguma com nenhuma delas, fora o fato de morar em Santa Felicidade, mas meu lado italiano nem é originário do bairro tradicional. Em compensação sinto uma ligação com as culturas orientais que não sei explicar. Coisas do além. Sejamos brazucas, façamos o que podemos. Só isso.
ResponderExcluirDescendente de chineses que dança flamenco... What a wonderfull world!
ResponderExcluirEu sempre tive raiva desse negócio de orgulhar-se de uma origem europeia. Coisa muito comum no Rio Grande do Sul. Estou há tempos para escrever um post sobre isso e este teu me motivou. Logo vai lá para o blog.
Tenho raiva de quem diz "eu sou italiano", só porque tem um bisavô que nasceu na Italia. Não se trata de nacionalismo brasileiro, mal do qual quase não sofro, mas de nojo por esse amor descabido ao que é de fora, que descreves tão bem. Mas até mesmo eu, com essa prevenção toda e sendo descendente de italianos e alemães, fiquei estupefato ao assistir aos filmes de Mario Moniccelli sobre as cidadezinhas italianas e perceber: é isso aí! A cidade onde nasci! A minha família! É exatamente assim!
Acho que tens razão, esse dado é inevitável. O interessante é saber lidar com isso.
Partilho do mesmo sentimento que o Guto. No entanto, vou um pouco mais longe. Embora que aprecie e respeite em especial a ligação de outras cultura com o conhecimento e a história, acho que há um frescor, uma inventividade, uma afetividade na cultura brasileira que é bonita sim e deve ser celebrada. Se isso me faz patriota, não sei. Mas aprendi a ver as vantagens e desvantagens da diferença e não me sinto menor que ninguém. Não consigo pensar no Brasil e nos brasileiros como vira-latas. A não ser no bom sentido: vira-lata se vira melhor que cachorro de raça na maioria das dificuldades.
ResponderExcluirProduzimos coisas boas e gente boa também. Chorar por que não nasceu na Europa ou nos EUA... ora, se a criatura se acha tão boa, porque não faz seu melhor por aqui, não é?
Pois é, Disfarçada, temos muitas misturas. Aí as pessoas escolhem uma ou outra, deixam de lado a parte negra e índia, ou até mesmo a parte portuguesa por ser um europeu menos valorizado. Somos mais a herança, somos mais o que lemos e acreditamos?
ResponderExcluirFarinatti, teu post sobre isso ficou excelente!
( http://terradosmuitos.blogspot.com/2011/04/sobre-brasoes-e-descendencias.html )
Nikelen, essa coisa vira-latas é uma das que me agradam, e ser uma mistura de um monte de coisas que geraram algo diferente.
Isso que você falou de se achar tão bom, me lembra quando meu irmão mais velho dizia que ia pros EUA, pra ficar rico. Aqui, era o maior encostado, mas se propunha a ser entregador de pizza nos EUA. Meu pai lhe disse:
- Então por que não aproveita e entrega pizzas por aqui mesmo? Pelo menos você já conhece o nome das ruas...
Hahahaha
ResponderExcluirSeu pai foi ótimo!
Desculpas para não se agir aqui e agora, não faltam, não é?
Olá,
ResponderExcluirTexto muito bom.
Há pouco tempo era moda elegal valorizar nossa mestiçagem.
De uns tempos pra cá, virou coisa de "esquerdista que gosta de gay"... pena, pois a mistura é o que nos difere.
MEU BISAVÓ ERA DE PROCEDENCIA CHINESA E AINDA HOJE ALGUNS DESCENDENTE COMO EU NASCEMOS COM AS CARACTERISTICAS ORIENTAIS E DEPOIS COM O PASSAR DOS TEMPOS PERDEMOS ACHO QUE UMA ÁRVORE FORTE É QUE PRESERVA AS SUAS REIZES.
ResponderExcluir