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segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Antipsiquiatria e experiência pessoal

A antipsiquiatria foi um movimento que surgiu, como o próprio nome sugere, contra a psiquiatria. Se maiores autores foram Ssaz, Laing, Scheff e Goffman. Ssaz afirmava categoricamente que a doença mental não existe. O comportamento incompreendido de algumas pessoas as levariam a ser interpretadas como doentes e tratadas como tal por sua família, equipe médica e sociedade. O doente seria vítima de uma conspiração. Laing, ao estudar esquizofrênicos dentro da sua família, percebeu a presença do que chamou de duplo vínculo: é uma relação que gera conjunto de exigências autoritárias e contraditórias, que tornam impossível ao lado dependente responder de maneira racional. Por isso, a aparente incoerência do comportamento esquizofrênico faria sentido dentro do que lhe foi exigido no seu grupo primário. Scheff trabalha com a teoria da rotulação, que diz que um comportamento disfuncional ocorre em função do comportamento dos outros, e é a maneira como é interpretado que pode fazer com que ele seja visto como doentio. O comportamento transgressor original, que pode ter múltiplas origens (até mesmo orgânicas), faz com que lhe seja atribuído um esteriótipo patológico, que faz com que todas suas ações posteriores sejam interpretadas da mesma maneira. Por fim, Goffman, trabalha com o conceito de estigma. A sociedade é preconceituosa e trabalha em prol da desvalorização de alguns membros. Uma vez vítima do estigma de doente mental, é muito difícil se libertar.

Foi com esse pensamento que eu fui fazer estágio numa clínica psiquiátrica. Eu nem ao menos procurei por ele - uma amiga havia pedido uma vaga, arrumou coisa melhor, e pra não ficar feio me colocou no lugar dela. Eram duas alas, a de pacientes que ficam lá durante o dia e voltam para casa e a da internação. Assim que a gente entrava, tinha que ficar na Ala Dia. Ao contrário do que inicialmente parece, é na ala dia que estão os pacientes mais institucionalizados. Muita gente tem uma crise e se interna durante algumas semanas e nunca mais volta. Para estar na Ala Dia, o paciente estava diagnosticado há anos e tinha uma relação de rotina com o seu internamento. Quem estava na ala dia não tinha emprego- ser doente era seu emprego, o que ocupava seus dias de segunda a sexta. Fui para a clínica com aquela vontade que todo estagiário de psicologia parece ter: eu queria fazer a diferença. Queria fazer como nos filmes - eu encontraria um paciente largado no canto, daqueles que ninguém vê solução. Eu me aproximaria, me tornaria uma amiga e quando todos se dessem conta, ele faria progressos que ninguém nunca imaginou. Todas essas ilusões acabaram logo nos primeiros dias que passei lá.

Eram várias turmas. Uma turma gostava de ver TV, outros gostavam de ouvir rádio, alguns gostavam de desenhar, a maioria gostava de ficar sentada pelos cantos. Os estagiários - geralmente estagiárias, todas novinhas - chegavam e eram simpáticos, e algumas pessoas eram simpáticas também. Não encontrei a revolta que esperava, assim como não encontrei a vontade desesperada de ser salvo. Alguns tinham algo evidente. Lembro em especial de um que adorava conversar com as estagiárias, e logo no segundo dia já contava que andava sonhando com a gente. Talvez para observar a reação e tentar encontrar alguma acolhida, descrevia com detalhes o teor erótico desses sonhos... Na maioria das vezes era preciso conversar com a psicóloga ou ler os prontuários para adivinhar o motivo da internação. Ninguém gostava de sair conversando sobre isso, assim como ninguém aqui fora gosta de mostrar o saldo do banco em vermelho para os outros.

Foram seis meses de estágio, e nesse período não salvei ninguém. E aprendi a jogar sinuca. Ou melhor, aprendi a segurar o taco e acertar a bola, porque sou péssima em sinuca. Por entender muito rápido que não salvaria ninguém, me relacionava com eles como me relacionaria com qualquer outra pessoa aqui fora. Isso me causou uma dor de cabeça muito grande, uma única vez; no geral fez com que os pacientes gostassem muito de mim. Eu tinha uma certa vergonha da equipe médica passar por mim quando estava com o taco na mão; já os pacientes pareciam gostar muito de me ver jogar tão mal. Conversavamos sobre TV, filmes, algumas vezes sobre nada. Pra não dizer que não fiz nenhum vínculo importante, fiquei próxima de uma adolescente, pouca coisa mais nova do que eu, com o diagnóstico de esquizofrenia. A única coisa que ela tinha de diferente era ser quieta e ter um olhar vazio. Ela não parecia ter motivos pra ficar ali, e receberia alta em breve. Só que quando fui fazer estudo de caso e entrevistei o irmão dela, descobri que antes de ser medicada ela sumia de casa de madrugada, andando, e que havia ameaçado a família com um facão.

Essas experiências todas me fizeram ver o porquê a antipsiquiatria é bonita como teoria, mas que contribuiu muito pouco ou nada para ajudar a vida de doentes psiquiátricos. Porque é muito difícil lidar com alguém assim -com alguém que te ameaça comum facão, ou que assedia todas as mulheres que encontra ou que parece indiferente a qualquer contato. É fácil dizer que as pessoas precisam de compreensão; mas é difícil saber o que fazer. É preciso tanta disposição, tempo, dinheiro, abertura e a coragem que na prática talvez não seja possível. Principalmente: eu vi que receber um diagnóstico psiquiátrico realmente estigmatiza profundamente; mas, como toda estigmatização, ela oferece à pessoa um ponto de vista diferente. A partir do estigma, eles olhavam a normalidade - com todas suas cobranças, reprimendas e dores - e calculavam a validade dela. Em outras palavras, a importância de ser normal é posta em dúvida. Muitos, claramente, passaram a preferir viver do outro lado. Querer que todos adotem nossa visão de normalidade, que a felicidade está em ser produtivo e pai de família, também não deixa de ser uma forma de violência.

5 comentários:

  1. Anônimo7:23 PM

    Lindo depoimento. A "doença mental" como escolha, como um ato de coragem - isso é muito difícil de entender por nós, os "normais"... @Reginacelia

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  2. Copio essa discussão que ocorreu no Facebook, porque o Rui Takeguma não havia conseguido postar aqui. Devo dizer, também, que me inspirou a escrever quando colocou os princípios de Ssaz no seu mural:

    Rui Takeguma
    É claro que "antipsiquiatria é bonita como teoria, mas que contribuiu muito pouco ou nada para ajudar a vida de doentes psiquiátricos." pois ela foi feita justamente pra questionar o que se chama de doença psiquiátrica. Até hoje, a única técnica que propiciou reversão de quadros esquizofrêncos foi a ANTIPSIQUIATRIA.
    Mas para haver um tratamento antipsiquiátrico, é necessário haver COMUNIDADES ANTIPSIQUIÁTRICAS. E para isso é necessário um apoio financeiro, o que houve historicamente é que essa ciência foi boicotada politicamente, pois suas teses questionavam a própria estrutura do sistema (não é a toa que os antipsiquiatras eram socialistas), pois para nós, é esse sistema quem geram indivíduos "desajustados" ou "loucos". Essa visão médica-psicológica que se pode salvar alguém, não está dentro da visão antipsiquiatrica que tenho, se alguém pode se "salvar" é a própria pessoa, mas enquanto considerado doente e tratado por clínicas psiquiátrica isso se torna IMPOSSÍVEL.
    Assim, antipsiquiatria de fachada não funciona (igualmente a psiquiatria tradicional), e essas "tentativas" de adaptar a antipsiquiatria as clínicas tradicionais são fracasso em todos os países - um ótimo filme que uso pra debates há mais de 20 anos, é o VIDA EM FAMÍLIA, que mostra um pouco desse processo político que esta ciência sofreu...

    Ainda haverá o retorno das teses antipsiquiátricas, porém com a radicalidade de não tentar se adaptar a essa sociedade, mas criando uma sociedade diferente...

    Regina Célia:
    Esclarecedor, Rui. É preciso acreditar na força da história (dos processos históricos), que trilha caminhos para um novo projeto de sociedade, nela incluída uma outra forma de lidar com o que conhecemos hoje por doença mental.

    Rui Takeguma
    O que restou da antipsiquiatria é o movimento antimanicomial, mas mesmo esse foi deturpado pelo sistema, simplesmente achando que eliminando o internamento resolveria algo mais profundo, ou seja, acabaram usando as teses antipsiquiátricas pra desalojar (jogando as vezes pras famílias sem condições de cuidar deles) os "doentes" que eles criaram (muitas vezes ao rotularem)...

    Regina Célia
    Eliminar o horror das internações psiquiátricas poderia ser um passo (preliminar, mas ainda assim um passo) para mudanças mais profundas, se essa luta não tivesse sido apropriada (e deturpada, como você disse) pelo capitalismo.

    Caminhante Diurno
    Que pena que você não conseguiu postar no blog, é um excelente comentário. Você tem razão, a antipsiquiatria era grande demais pra ser apenas colocada no modelo psiquiátrico como melhoria. Ela implica numa visão diferente sobre toda a normalidade, não apenas sobre a doença. No sistema que temos hoje, na ênfase em ser viável economicamente, contido e tantas coisas que nem ao menos são desejáveis, vejo a "loucura" também como uma forma de protesto. Por que quem está lá deve ser "curado", no sentido de se tornar mais um na multidão? São questões que a psiquiatria tradicional não tem como resolver.

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  3. Anônimo9:32 AM

    Bonito texto. Basta ter um doente mental na família para entender que não receber um psiquiátrico só lhe causaria sofrimento. Difícil defender que uma pessoa que, em surto, fica despida ao ar livre num inverno rigoroso e não come consegue ser feliz ao seu jeito. Tenho familiares com transtorno esquizoafetivo. Dia desses um deles estava triste por não ter conseguido ter uma vida dentro dos padrões - por não ter conseguido trabalhar, casar e ter filhos. Passei um tempo tentando explicar que o tão só fato de um homem "ser produtivo e pai de família" (como bem referiu o texto) não garante a felicidade, e que esse padrão é uma construção da sociedade e blá blá blá. Evidentemente, meu discurso tinha um limite: a dor dele é não ter tido como optar.

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  4. Obrigada pelo comentário, Anônimo. Ainda existe mais esse problema: a culpa que a família sente em internar um paciente. Fugir da normalidade, por mais que se tente ser compreensivo, é sempre difícil. É uma situação triste para todos os envolvidos.

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  5. Minha irmã foi diagnosticada como psicótica: Teve o primeiro surto aos 21 anos e, de repente, eu e minha mãe encaramos como o serviço público de saúde mental pode ser ainda PIOR q o "normal". Tratamento pior, inclusive, do que é dado pelas pessoas e sua ignorância. Hoje, em casa, somos três pessoas em tratamento com psiquiatra. Ou melhor, em tratamento psiquiátrico. A única que ainda não faz é porque rejeita qualquer tipo de ajuda. É o tal estigma que só atrapalha.

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