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sexta-feira, 6 de maio de 2011

Talento

Ah, o talento! Questão que atormenta todos os que se dedicam a uma arte. Quem não se sentiu um pouquinho que seja como Salieri, o invejoso personagem de Amadeus, ao ver alguém fazer melhor e com mais facilidade alguma coisa que você ama? Existem muitas discussões sobre o talento ser algo que o indivíduo carrega puro dentro de si, ou se é conquistado. Sobre o que ninguém tem dúvida, é que o talento existe. E ele possui algumas características, que tentarei desvendar.

(Eu deveria ter colocado exemplos de várias expressões artísticas, mas acabei privilegiando a dança. Além de ser a forma de arte na qual estou mais envolvida, achei que ficou mais interessante assistir videos do que clicar em fotos)


Talento é diferente de técnica
... mas se beneficia com ela. É importante ressaltar isso porque já vi mais de uma pessoa que faz questão de não estudar, de não ler sobre o assunto, não ver o que os melhores da sua área fizeram com medo de que isso estrague a pureza do seu talento. Nada mais errado. De nada adianta ter uma certa facilidade e não aprimorá-la. Sem a técnica, a arte se enche de ruído, de equivocos, de coisas que precisam ser relevadas pelo expectador. Quando há muitos erros em torno, o talento fica misturado em meio às imperfeições. Um talento verdadeiro encontra na técnica um instrumento de ajuda. A perfeição técnica permite alcançar a liberdade; a única preocupação, depois disso, é conseguir se expressar.




Escolhi um video do Baryshnikov porque ele é muito técnico, com eixo e acabamentos incríveis (oito giros seguidos e termina com perfeição todas as vezes), mas também um grande intérprete. No final do video mostra dois bailarinos que estavam no palco, fazendo figuração, impressionados com o espetáculo. Mas Baryshnikov também é muito expressivo, passa uma força e masculinidade no palco que dá vontade de... ir abraçá-lo. Ele tem apenas 1,68, o que para um bailarino é uma desvantagem. Nos pas de deux, o bailarino deve ser pelo menos na altura da bailarina, que fica cerca de 10 cm maior nas pontas. Mas técnico e talentoso desse jeito, não tinha como não colocar Baryshnikov como primeiro bailarino.


Talento pode ser perdido ou estragado
Infelizmente. Talento não é algo tão abstrato assim. Ele não está imune à exagero de sexo, drogas e rock´n roll. Ele é sensível a separações, crises existenciais, tragédias pessoais. Nem todos que são talentosos quando criança conseguem crescer e se manter à altura. O talento pode sumir, pode voltar, pode nunca mais voltar. Algumas vezes o talento parece ser só um momento, como aquelas bandas de apenas um sucesso. Dá pra considerar perda de talento quando o artista vive de um sucesso passado, uma fórmula que um dia funcionou e agora é apenas repetição. De certa forma, esperamos que o artista sempre se renove, pesquise, mantenha um olhar diferente sobre o mundo e nos comunique.




Escolhi Camille Claudel por ser um dos artistas que mais me toca. Sua história trágica, cuja culpa muitos atribuem (injustamente) apenas a Rodin, tornou Camille uma dessas artistas famosas por reforçarem a idéia de artista como incompreendido. A força dessa história nos a duvidar do seu talento, se ela não é famosa apenas por causa da biografia. Mas quando olhamos os trabalhos de Camille Claudel, é impossível não se sentir comovido. Um dos meus sonhos é poder ver as peças dela pessoalmente. Nunca canso de olhar para esta peça, La Valse - a maneira como a mulher foge e se entrega, como o homem a puxa para si com força e delicadeza, o movimento envolvente de ambos. É uma pena pensar que alguém com um talento desses não encontrou todas as possibilidades que podia e que sucumbiu à própria doença.


Talento é pessoal e intransferível
Imitar alguém talentoso ou ser filho de alguém talentoso não nos torna talentosos; às vezes nem ao menos uma inspiração é possível. Em outras palavras, é como se cada obra tivesse uma personalidade, e a personalidade dos talentosos fosse inconfundível. Você pode não gostar, você pode até mesmo achar horrível e dizer que não é arte, mas você nunca será indiferente. Dentre tantas coisas que existem no campo artístico, todas tentando seu espaço e querendo dizer algo novo, a capacidade de ser inconfundível é um grande mérito. O olhar, o gesto, a forma de tratar um tema, de certa forma, nascem e morrem com a mesma pessoa.



Eu vi o quadro Jardim das Delícias de perto. Passei o dia inteiro no Museo del Prado, fiquei umas seis horas lá dentro. Saí zonza. Com o tempo, tudo vai ficando bastante parecido - óleos bem feitos, detalhes, anjos, naturezas mortas, etc. Até que eu entrei numa sala e uma tela amarela brilhava no meio dela. Me senti renovada na vontade de olhar. Era ele, o Jardim das Delícias. Com meus poucos conhecimentos de pintura, tentei analisar a estrutura do quadro, o que era centro, que recursos usou, quais as simetrias, e o quadro resistiu à tudo. Tudo nele é único. Não precisa de muito pra olhar um Bosch e saber que é um Bosch.


Talento se revela nos primeiros segundos

É como se o encanto chegasse antes mesmo da obra. Enquanto o comum precisa de muito tempo, de muita análise e que prestem atenção na dificuldade do que ele faz e no valor da proposta, o trabalho cheio de talento agrada de primeira. Ele nem ao menos precisa que o público saiba o que ele fez, tecnicamente falando. É um trabalho que agrada, que toca, que mexe com alguma coisa, mesmo que não saibamos explicar o que aconteceu.



Eu já vi esse video do Antonio Gades tantas vezes que já perdi a conta e verei outras tantas ao longo da minha vida. Não dura nem dois minutos. Começa com ele erguendo os braços, uma coisa tão simples que qualquer um pode imitar. Mas não com a mesma solenidade que ele. A gente o vê erguendo os braços e fica na expectativa. Existe tanta personalidade nesse gesto que ele nada tem de banal. E quando Gades começa a dançar, ele faz o que quer com a nossa atenção. Nos perdemos quando ele é rápido, ficamos hipnotizados com a precisão dos braços, um simples mover de mão parece importante.


Talento se impõe

É sempre a mesma briga: pelos melhores papéis, pelo melhor lugar no palco, pela melhor coreografia, por mais tempo no video, pelo melhor lugar da galeria. Porque existem essas divisões, coisas estratégicas que aumentam a visibilidade. Ao mesmo tempo, todos sabem que isso, por si só, não garante nada. Fazendo uma ponta, falando pouco ou nada, num cantinho, alguém com talento é capaz de se destacar. Por mais simples que seja o tema, o gesto, a proposta, uma pessoa de talento fará aquilo com uma qualidade, com uma personalidade, que chamará atenção. Ou o contrário - fará algo complicado parecer muito simples, tamanho o apuro no que faz.


Muita gente não gosta de ópera. Pra essas pessoas, é um dramalhão exagerado, comprido, com atores gritando no palco. Mesmo que você seja um desses, dê play neste video. É Maria Callas cantando Carmen. Mesmo quem não sabe o enredo da ópera, e não faça a menor idéia de quem é Maria Callas, que tipo de voz ou amplitude vocal ela tem, do porquê ela ser considerada uma das grandes, é capaz de perceber que ela é ótima. A gente ouve Callas cantar e se sente interessado, comovido. Isso é talento.


Talento é surpreendente
O talento renova. E pode renovar de duas maneiras diferentes, até mesmo opostas: uma, pela capacidade de fazer algo que ninguém jamais teria pensado. É o caso das rupturas artísticas radicais, nos novos movimento, novos temas e novas cores. Outra maneira de surpreender é dentro das próprias convenções, renovando-as. O talentoso olha para o que todos conhecem e consegue extrair um sentimento novo. Algo que era engessado, apenas uma convenção, consegue voltar ao princípio e transmitir o mesmo da primeira vez.



Este video virou febre na internet. Eu acompanho o programa e vi no dia em que foi passado. As razões do sucesso dele não são difíceis de entender, o video é um conto de fadas moderno: o rapaz pobre é desacreditado pelas pessoas, mas ele se mostra tão talentoso que todos são obrigados a se render diante de sua grandeza. Quando vi o John Lennon dançando, não fiquei plenamente convencida. Achei que foi um golpe de sorte, que ele só sabe fazer braço de cisne e nunca mais apresentaria algo tão bom. Depois vi ele dançando outras coreografias, nas outras etapas do programa, e me rendi. Ele tem muito talento sim e tem a capacidade de renovar o que quer que ele se proponha a dançar.

2 comentários:

  1. Eu não tinha visto essa dança do John Lennon. Que coisa linda! Isso expressa bem o tênue limite que sempre acreditei existir entre a expressão do talento genuíno e o ridículo. Já ouço a maioria das pessoas que assistiram a essa cena, na tv, dizer: que coisa ridícula, esse magriçela fazendo esses contorcionismos com as mãos. Acho que o talento fala ao receptor nobre em cada um, nunca ao vulgo, à ralé (ralé espiritual). Há um chamado domingo cultural onde moro, onde donas de casa mostram seus quadros de vaquinhas com um número surreal de pintas negras, e velhos tocadores de viola fazem dupla na calçada para cantarem modões caipiras. Muito deprimente e mesmo medonho, e todos percebem isso. O talento desconcerta pois não oferece a opção fácil de elogiá-lo pelo que tem de apiedante.

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  2. Charlles, um dia desses eu estava no ônibus e tinha 3 moças conversando. Suponho que de uma classe mais pobre (pelo vocabulário, as roupas e os dentes). Uma delas disse que ela tinha um vício, uma mania, uma coisa estranha mas que é muito dela: ela gostava de ler. Ela chegava a gastar 40 reais num livro e tinha adquirido toda série do Crepúsculo. "Ah, um livro desses tudo bem, mas eu não gosto de ler. Na escola o professor mandava ler e era uma tortura". "Mas todo mundo gosta de ler. Se você está num consultório e tem uma revista, você vai ler". A terceira, que não havia se manifestado ainda "Nem assim. Eu só folheio. Eu odeio ler, não leio de jeito nenhum".

    Eu achei surpreendente, porque num certo nível de instrução, todo mundo "adora" ler. Nem que deteste, mas acha feio dizer que não lê. Faz parte do nosso senso comum. Da mesma forma, me surpreende alguém ter definido assim, pra você, os braços do John Lennon. A cara malvada no flamenco, ficar rolando no chão no contemporâneo, os agarramentos nos pas de deux... tem coisas que são diferentes e ficam ridículas se olhadas só com o olhar do dia a dia.

    Há de se ter uma sensibilidade mesmo.

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