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domingo, 3 de abril de 2011

Porrada

Não sou uma grande noveleira. Sou do tipo que gosta de acompanhar mais pela capa das revistas de fofoca do que pelas novelas em si. Mesmo assim, me salta aos olhos o quantidade de personagens de novelas que são espancados. Há um ou outro caso de denúncia de violência contra a mulher, mas quem geralmente apanha são vilãs. E por outras mulheres, as mocinhas. O público adora e eleva muito a índice de audiência no capítulo onde a porrada é exibida. Nas novelas mais antigas, a vilã recebia um sonoro tapa, como a ambiciosa Maria de Fátima de Vale Tudo (1988-1989). Em novelas mais recentes, como Senhora do Destino (2004-2005) ou Celebridade (2o03-2004), a mocinha conta com ajuda de amigos para encurralar a vilã e bater à vontade, até saciar toda sua sede de vingança.




Onde foram parar as vitórias morais - a mocinha desvenda todos os equívocos, fica ao lado do homem que ama, rica, feliz e ética? A vilã amargaria o fracasso, ou até mesmo a loucura, sem que pra isso precisasse passar pelo hospital. Isso parece ter se tornado insuficiente para o público. Depois de passar uma novela inteira perdendo tudo, queremos ver a mocinha deixar de ser tão boa e sujar as mãos; queremos um revide físico, que a vilã sofra na pele tudo o que ela fez. A bondade superior dos que apenas sofrem parece passiva demais. Mocinhas assim deixaram de ser verossímeis, esse tipo de ética não gera empatia. Quando ela parte para a porrada, mocinha e vilãs invertem seus papéis; como na vida real, bem e mal se confundem. É difícil encontrar alguém que não se identifique com as vítimas; por isso, ser capaz de revidar com violência eleva alguém à categoria de herói.





Não é todo mundo que tem um inimigo para bater. Ter um vilão, alguém responsável por todos os nossos males, não deixa de ser um privilégio. Eu rezo toda noite pra ter inimigos com os do Maluf, mas ninguém nunca se deu ao trabalho de fazer um grande depósito na Suíça em meu nome. O que acontece no dia a dia é uma série de aborrecimentos que atingem a todos de maneira bastante impessoal: ter que lidar com uma burocracia cara, lenta e burra cada vez que é preciso tirar algum papel oficial; horas de espera em hospitais ou falhas no atendimento em planos de saúde, o que leva as pessoas a pagarem duas vezes por serviços ruins; longos minutos de musiquinhas ou ter que repetir várias vezes a mesma informação para serviços de telemarketing; demissões que independem da atuação do funcionário e que se devem unicamente por corte de custos e por aí vai. Ninguém se interessa, ninguém nunca é o responsável por nenhum dos nossos problemas.





Quem trabalha na linha de frente com o atendimento ao público conhece bem a necessidade de descontar a raiva nos outros. Os casos de violência gratuita que estão cada vez mais comuns. Todos se sentem esmagados coletivamente. A passividade, a atitude de suportar os inconvenientes sem revidar é a atitude mais exigida do cidadão comum. Se a mocinha da novela simplesmente deixar passar, estará repetindo o que acontece o tempo todo. Novela não é apenas um pedaço de vida real, ela tem uma função de catarse. Se as vilãs agora apanham nas novelas, é porque agora o público sente uma grande vontade de bater.

6 comentários:

  1. engraçado que parece que as vilãs apanham mais que os vilões, né? eles morrem, são punidos, vão presos, mas essa coisa catártica de dar uma surra ou um tapão é sempre nelas.
    porque o povo gosta de ver mulher apanhar, então, vamos bater em uma que merece que fica tudo certo.

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  2. Ufa, Julie! Você entende desse assunto muito mais do que eu e teve a mesma impressão - agora estou mais segura!

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  3. Uma coisa que gosto em vc é esse ecletismo sem disfarces. Não, eu não gosto de novelas, mas a minha esposa é um caso de fanatismo que daria o Nobel a um estudioso social. Ela assiste a todas, e com um olhar vidrado de maníaco que me mete medo.

    Eu, propriamente, adoro a cultura pop. Ouço rock mais que jazz e erudito, sem culpa. Não assisto mais aos BBBs por achar que a fórmula se esgotou, mas ha alguns anos era um devoto. Eu fazia o curso de História, estava no balcão da biblioteca da universidade pegando um livro, quando me envolvi a fundo numa discussão de quem iria ganhar o BBB. Se não me engano, era o ano do caubói, e juntamos uma turma discutindo hermeneuticamente sobre isso. Aí aparece um professor, e, do alto de sua noção de importância, nos olhou a todos e lançou o seu clichêzinho de que "não discutia sobre um tema tão banal, etc, etc". Um bosta de um professorzinho a quem ninguém se dignou a responder, e quando deu as costas, a alegria retornou intocável.

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  4. Charlles, se tem uma coisa que eu realmente não levo à sério é essa história de alta cultura. Quem só consome o que é "correto", pra mim, é um inseguro, que precisa provar a todo momento, com todos os seus gostos, que é um intelectual. Gosto quando o Milton discute música clássica e literatura lado a lado com posts sobre futebol e mulheres bonitas. Porque quem é realmente culto não precisa se preocupar em provar isso.

    Essa história do professor é típica. Na academia ninguém nunca leu Paulo Coelho, viu BBB, ouviu música sertaneja ou toma florais de bach (lembrei disso porque encontrei uma professora da sociologia comprando e ela ficou constrangida em ser flagrada por mim). Isso só me faz relembrar e ficar feliz por ter saído de lá.

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  5. Deixei de ver novela há uns 15 anos. Me lembro de ser adolescente e adorar Que Rei Sou Eu? Depois disso, assisti algumas parcialmente. E sempre me impressionei com a pancadaria nas novelas do Manoel Carlos. Tipo: rico também mete a mão na cara dos outros!
    Concordo com tuas conclusões.
    Em tempo: sou acadêmico e confesso que gosto de enlatados americanos como Friends e The Big Bang Theory; me diverti muito lendo Harry Potter e amo futebol no rádio. Agora, música sertaneja e Paulo Coelho estão muito além do meu ecletismo.

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  6. Que rei sou eu? Temos as mesmas referências...

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