A sociologia entende que culturas vão e vem; que falar em decadência é, na realidade, a eleição de uma cultura e a pretensão de eternizá-la. Algo sempre fica decadente em relação à alguma coisa - então, como dizer o que é referência? Naturalmente, cada um escolherá como referência a cultura a qual pertence e a época que vive (ou viveu). Por isso a tendência de olhar para as gerações mais novas e achar que elas estão decadentes, assim como nossos pais diziam o mesmo quando éramos jovens. A religião parece trazer a idéia da decadência no seu cerne, porque elas geralmente surgem baseadas na figura de um lider carismático ou pouco após a sua morte. Esse lider se torna o marco zero, e à medida em que nos afastamos da época em que ele esteve presente, a decadência aumenta. A idéia de decadência funciona como alguém que anda olhando para trás.
Em alguns casos é difícil não pensar que estamos vendo uma decadência. Vejo as pessoas terem muita certeza disso no campo artístico, que parece ter entrado numa simplificação sem fim. Um exemplo bem claro é o da música. Pouca gente é louca de comparar a música clássica com a pop; falemos da música pop em relação a si mesma. Ainda ouvimos e cultuamos a música dos anos 70 e a música hoje é quase toda descartável. O problema é que os objetivos e a forma de produzir música mudaram. Ao contrário do conhecimento científico, que procura ser acumulativo, na arte a mudança não quer dizer superação, apenas diferença. Ainda ouvimos as obras do passado e gostamos; temos acesso às que permaneceram e por isso achamos que tudo naquela época era excelente. As obras atuais ainda não sofreram o filtro do tempo, estão próximas demais. Não tem como negar que a nossa música que se ouve hoje é realmente menos elaborada, em critérios melódicos. Ela está associada a outras formas de consumo e está muito ligada à imagem, aos videoclipes. Isso é melhor ou pior? Depende do critério...
Nos "costumes" encontramos a maior queixa de nossa decadência. Por costumes, geralmente podemos entender o comportamento sexual. Todos estaríamos mais libertinos. A liberdade sexual dos anos 60 teria nos levado ladeira abaixo; o modelo anterior não era perfeito mas pelo menos funcionava. Ou seja: a liberdade sexual ampla e às claras é assustadora. Não dá pra mensurar a quantidade de pessoas que burlavam essas regras, mas sabemos que elas existiam. Homens e mulheres não sabem mais qual comportamento é normal ou quantos parceiros uma pessoa saudável pode ter. O homossexualismo deixou de ser considerado uma doença. Essa dificuldade em encontrar respostas simples dá a alguns a sensação de decadência. Não que não houvesse liberdade sexual antes, mas ela estava restrita a um pequeno grupo: homens heterossexuais. A eles ter muitas parceiras não apenas não era negado como era estimulado, dentro e fora do casamento. Já para as mulheres, poucos parceitos, ou um único parceiro que não fosse o marido já prejudicava toda uma vida. Homossexuais estavam condenados a um sofrimento ainda maior do que o de hoje, onde pelo menos aceitamos que o desejo existe. O modelo anterior era mais preto no branco; justamente por isso, mais comportamentos eram considerados transgressores.
Apesar de todas as relativizações que fiz, eu acho que estamos decadentes. Eu não veria problema nenhum em subvertermos critérios, consumirmos mais, explorarmos a nossa sexualidade e tantas outras coisas que sairam do armário na nossa época, sem que ao menos tivessemos idéia de que havia um armário. Acho que qualquer coisa teria valido a pena se estivessemos mais felizes. Mas não estamos. Lembro de Durkheim, o pai da sociologia, que dizia que era perigoso quando o indivíduo se sentia apartado do todo. Ou de Bauman, que fala da nossa incapacidade cada vez maior de nos relacionarmos face a face. Por fim, de Boaventura, que nos alerta que a espera passiva pelo futuro não nos preparará para ele. Parece que entramos num ciclo destrutivo em que nada deve permanecer sólido e nos ressentimos por não termos onde segurar.
Não só não estamos mais felizes, como as pessoas estão cada vez mais desesperadas em encontrar O sentido, comportamento, razão, wharever que vá lhes trazer a felicidade plena. E as pessoas jurídicas lucrando cada vez mais em cima desse desespero (e aqui não falo só de empresas, mas também dos gurus que vendem fórmulas miraculosas).
ResponderExcluirO que todos parecem não perceber é que a felicidade não é um estado absoluto, mas um conjunto de momentos passageiros.
Baseado nas ideias aqui expressas que vim morar numa cidade pequena. Ainda acho que o mal é termos que sair de nossas casas, onde convivemos com nossas próprias regras, e fazermos parte da aturação recíproca diária. Entre um sujeito e outro, atrapalhando que se olhem nos olhos, está toda a cidade turbulenta.
ResponderExcluirVocê inseriu muito bem esses três gigantes: Durkhein, Bauman e Boaventura. Concordo com as análises sobre os problemas da era atual.
ResponderExcluirNão estou afirmando que tu compartilha da ideia que vem a seguir, mas algumas pessoas podem pensar assim: às vezes, quando começamos a falar em decadência, o efeito colateral é o risco que criar uma narrativa em que o passado é visto como uma Idade do Ouro.
Pelo que tenho olhado para o pensado percebo que tinha muito, mas muito horror lá também.
Cristiano, falando de maneira bem simples é isso, né? Mas o simples é sempre o mais difícil.
ResponderExcluirCharlles, tenho vontade de ir pra uma cidade pequena por causa disso. Mas eu temo que talvez não adiante nada, porque estou urbana demais, sempre fui urbana. O que me faz pensar no que o Farinatti falou.
Mesmo que o passado fosse um Idade de Ouro - e pra isso eu respondo de maneira muito simples: "que opções você acha que eu teria como mulher?" - não poderíamos nos refugiar nele. Fomos criados e estamos adaptados à nossa época. Pra chegar lá, quem sabe fosse preciso passar décadas rodando no deserto, como os seguidores de Moisés, pra chegar lá como outra geração.