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sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Cem páginas de Ulisses

Foi unicamente meu amor por Guimarães Rosa que me levou a ler Ulisses. Grande Sertão: Veredas foi um dos livros que li com mais prazer na minha vida. O único inconveniente de ler Guimarães assim que nos aproximamos é a linguagem, que no começo assusta, mas se torna fluida e musical com um pouco mais de persistência. E eu sabia que essa persistência o Charlles tem de sobra. Ele é um grande leitor, mas carregava consigo a teimosia de não ler Guimarães por ter resistência a autores brasileiros. Ao mesmo tempo, eu tinha uma resistência completamente auto-explicativa com relação a idéia de ler Ulisses. Um livro com mais de oitocentas páginas onde quase nada acontece. Famoso por entediar quase todos os que tentam se aproximar dele. Símbolo máximo da literatura que privilegia a forma de acordo com o Paulo Coelho. Usado largamente por intelectuais para se colocar acima dos leitores comuns. Eu jamais teria a iniciativa de ler algo assim normalmente.

Mas tive, por amor ao Rosa. Desafiei publicamente o Charlles a ler Grande Sertão: Veredas, que eu no mesmo instante começaria Ulisses. Em outras palavras, cada um leria um livro que nunca quis ler, mas que era amado pelo outro. Como eu previra, Grande Sertão precisou de poucas páginas para mostrar ao Charlles o quão maravilhoso é. Eu, com Ulisses, comecei tão entediada que precisei encher muito o saco do Milton e fui liberada pelo Charlles de não cumprir minha parte no desafio. Minha resposta foi: lerei até a pagina cem. Darei essa chance, darei cem páginas para ser conquistada. Depois disso, verei o que fazer. Eu nem sabia que o Capítulo Cinco encerra na página 99 na edição que eu peguei, da editora Objetiva e tradução de Bernardina Silveira Pinheiro. Agora que li esses cinco primeiros capítulos estou pronta para dar minhas primeiras impressões.

O livro me desagradou logo nas suas primeiras páginas. Eu senti falta de um como, onde e por que. Nunca havia me sentido uma leitora cartesiana e resistente a novas propostas como Ulisses fez comigo. Eu me lembrei d´O Vermelho e o Negro de Stendhal, que eu tentei ler duas vezes e nas duas desisti pelo mesmo motivo: no Capítulo Um o autor fala da cidadezinha onde a ação acontece, e descreve cada casa e cada família, todos os futuros personagens, como se fosse um passeio pela rua. Achei o recurso tão cansativo que logo após conhecer todo mundo desse jeito eu não queria saber de mais nada. Me parece que há uma evolução na construção de uma narrativa, onde elimina-se cada vez mais essas descrições desnecessárias. Ao invés de quase metade do livro de apresentações, igual Dostoiévski fazia, o leitor conhece o personagem junto com a história. No Ulisses esse corte ao desnecessário é tão grande que tive uma impressão de mutilação, como se ele tivesse cortado demais.

Somos lançados à história. Estão todos conversando, pensando, atuando. Ninguém nos explica qual a forma de narrativa, quais personagens são essenciais, em que momento quem está pensando o quê. As falas dos personagens se misturam, porque não temos tempo de guardar quem é médico, quem ensina, quem vai ao enterro. Acho isso razão mais do que suficiente para fazer o leitor desistir. Não leia como quem lê um romance, tenha paciência, disse o Milton nas nossas conversas sobre Ulisses. Continuei a ler, tentando abstrair o fato de não estar entendendo nada. E descobri que é exatamente isso que o leitor precisa quando lê Ulisses: se deixar levar. É como se o livro não tivesse as páginas iniciais, como se ele cortasse aquela longa narrativa que nos faz entender a dinâmica da história e para ir direto à parte onde já lemos por prazer. A melhor explicação que consigo imaginar é a seguinte: sabe quando já somos tão íntimos e já gostamos tanto de alguém que apenas estar ao lado da pessoa, ou falar sobre qualquer besteira já é prazeroso? A relação que se precisa ter com Ulisses é a mesma. Acompanhe - James Joyce convida - os pensamentos, as idiossincrasias e coisas rotineiras desses personagens por si só. Sem ter pressa de chegar, apenas porque as coisas que eles vivem naquele momento podem ser interessantes.

É tão interessante assim? Estou descrevendo o que é necessário e não dizendo que acontece naturalmente. É um exercício. Depois de um início sofrido, de pelo menos umas cinquenta páginas, comecei a entender qual é a do livro. Do tédio absoluto, me percebi sentindo algum prazer em ler umas passagens. Ainda não tenho certeza - será que isso já é orgasmo? se pergunta a mulher que nunca teve (uso uma metáfora sexual já que o livro parece apontar com persistência para esse caminho). Dizem que depois o livro fica ótimo, hilariante até. Eu nem ao menos consegui decidir se gosto do livro. Terei de ler mais cem páginas para decidir.

2 comentários:

  1. Ainda acho que você não vai gostar. Talvez o que te assombra seja uma falta de perspectiva histórica do gênero romance. Eu li O Vermelho e o Negro e gostei muito. Naquela época, o gênero pedia esses inícios descritivos, ainda mais na França_ a coisa foi assim com Balzac e Flaubert e a maior parte quase absoluta dos escritores do período. Dostoiévski soa maçante nas primeiras 50 páginas de quaisquer de seus grandes romances, com o mesmo recurso e uma sucessão atordoante de nomes. Ulisses realmente parte do nada, cria uma nova perspectiva_ muitos grandes obras seguiriam o mesmo recurso, dali para frente. E a mim, as primeiras páginas de ulisses estão entre as minhas preferidas, justamente por esse estranhismo, como se estivéssemos na metade de um livro cuja metade inicial foi arrancada e perdida.

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