Páginas

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Luz em Agosto

A primeira parte do livro Luz em Agosto, de Faulkner, é como acompanhar a formação de nuvens de tempestade. Começamos o livro com a caminhada de uma mulher grávida e a história se interrompe num ponto. Depois somos apresentados a outro personagem, e depois outro, e mais outro, a ponto de você se perguntar se aquele desfile de pessoas levará à algum lugar. Até que você percebe que a trajetória de todos se une e se mistura num só acontecimento, para a história se centralizar num personagem específico - Joe. E depisi que isso acontece, o leitor não consegue abandonar o livro até descobrir o fim todos os que apresentados no início da trama.

Imagino que um dos maiores problemas ao escrever uma história seja o da empatia. Logo no início do livro, o leitor deve se apaixonar por um dos personagens principais, senão abandonará a leitura. Sem empatia, de nada adiantará lhe dar um final feliz ou exterminar toda a família do herói. Cada autor resolve esse problema de uma maneira particular. Para mim é muito claro que Dostoiévski leva pelo menos a metade do livro apenas apresentando os personagens. Ok, Crime e Castigo começa logo com o assassinato. Mas depois a história esfria. Os personagens no início dos livros de Dostoiésvki ficam muito tempo andando, esquentando as mãos nos samovares, conversando com padres, reunindo a família ou simplesmente se conhecendo. É preciso, por parte do leitor de Dostoiévski, uma certa boa vontade; vale a pena, mas a história demora pra pegar no tranco. Faulkner, ao esconder do leitor qual personagem seguiremos, cria um suspense interessante e nos envolve com cada um. Outro recurso que cumpre a mesma função é a maneira como ele mistura passado, presente e futuro durante a narrativa.

Não é um livro difícil de ler por sua linguagem e forma, embora a necessidade de traçar a genealogia de tanta gente às vezes se torne cansativo e confuso. Mas é um livro exigente, incômodo. Joe sofre muito e nós sofremos junto. É um personagem que se esforça tanto e a única coisa que consegue é manter-se vivo. Como falso-branco ou branco-negro, ele expõe um preconceito racial tão grande que chega a ser difícil de entender. É como se o sangue negro fosse a personificação do Mal. Essa hereditariedade misteriosa, essa maldade que vem de berço, funciona como um estigma e determina toda a trajetória de Joe. Ele sente necessidade de se declarar, como quem busca algum tipo de perdão; essa fraqueza o torna algoz de si mesmo, que não é capaz de pedir para os outros ignorarem o que ele mesmo recorda todo o tempo. Joe sofre de uma perseguição sem razão e sem escapatória muito pior do que a kafkiana, por ser completa e íntima.

No livro é muito clara a barreira fundamental entre um ser humano e outro, tão grande que nem ao menos é expressa. Todos os personagens de Faulkner são solitários, de uma solidão profunda, permanente e dolorida. A relação entre pais e filhos apenas coloca sobre os últimos o peso da hereditariedade e a impossibilidade de superação individual. Os que tentam apelar para a religião se tornam loucos, agressivos e - por consequencia - ainda mais solitários. A única excessão do livro é justamente a mulher grávida do início, Lena. Ela é a única que parece preservar uma certa pureza, uma crença no ser humano e uma fé tão grande que leva à duvidas sobre sua capacidade de julgamento - e no fim do livro, nos detalhes, ela mostra que sabe muito bem o que está fazendo. É com ela que o livro inicia e com ela que o livro termina, fechando o ciclo. Com isso o autor parece nos indicar que aquelas histórias foram apenas radiografias de muitas outras histórias, de sofrimentos e heróis (ou anti-heróis) anônimos que existem em todos os lugares.

3 comentários:

  1. Excelente! Gostei da estréia desse novo blog. Disse tudo sobre o livro no estilo da Caminhante, sem firulas, direto, coloquial.

    O texto tá tão bom que vou pedir a vc que releia, para reparar em alguns errinhos da pressa na digitação. (É sempre bom quando um leitor faz esse alerta, como aconteceu do Rômulo me corrigir em um post lá do meu blog.)

    Gostei mesmo desse blog. Sempre quis ler textos seus sobre literatura e artes em geral.

    Abraços!

    ResponderExcluir
  2. Também gostei muito. Uma delícia ler os seus textos, Caminhante, bem direto, sem frescuras.

    ResponderExcluir
  3. Uma linda estréia. O que mais gosto é do vigor nas suas palavras. E, neste texto específico, gostei muito da observação sobre o tempo que Dostoievski leva pra nos apresentar seus personagens. É isso mesmo e é exatamente isso, talvez, que me encanta tanto, a intimidade com que passo a segui-los, a conhecê-los..
    E o layout assim (com fundo claro) é melhor para os pobres ex-míopes.

    ResponderExcluir

Desande aqui

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.